Gravações em poder da Comissão de Ética Pública da Presidência da República (CEP) mostram que a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, ofereceu uma saída negociada antes de demitir uma ex-secretária do ministério que, segundo denúncia formulada por servidores da Pasta, teria sido vítima de racismo no exercício do cargo.
O acerto envolveria aumento de “recursos” para entidades no Pará, Estado de origem da secretária, e buscar “dinheiro” até fora do País para um grupo de apoio à campanha eleitoral dela em 2026. Nas gravações feitas por servidores da Pasta e obtidas pelo Estadão, a ministra acenou ainda com a possibilidade de emplacar a secretária em cargo ligado à COP-30, a cúpula climática das Nações Unidas, a ser realizada pela primeira vez no Brasil, em Belém (PA). O “processo ético” envolvendo a ministra entrou na pauta de julgamentos da Comissão de Ética desta segunda-feira, 24.
O pivô do caso é a ex-secretária nacional de Articulação Institucional, Ações Temáticas e Participação Política Carmen Foro. Procurada, a ex-secretária não quis se manifestar oficialmente. Já o Ministério das Mulheres e a defesa da ministra negaram que Cida Gonçalves tenha feito oferta de contrapartida para que Carmen aceitasse a demissão, seja uma “tarefa” na COP-30 ou repasses de verba do ministério. Também rechaçou a possibilidade de que a ministra tenha sugerido que se envolveria em buscar financiamento externo ao grupo político de Carmen, com vistas à campanha de 2026. A ministra também nega ter se omitido no caso da denúncia de racismo que teria ocorrido em sua Pasta (leia mais abaixo).
O Estadão obteve um relato em texto, uma gravação de queixas de ex-servidoras à Corregedoria do ministério e outro áudio em que a própria Cida fala sobre as contrapartidas e a proposta de que construíssem não só a saída acordada como também a futura candidatura de Carmen Foro.
Carmen Foro deixou a equipe do Ministério das Mulheres em 9 de agosto do ano passado. Três dias depois da exoneração, a ministra realizou uma reunião interna com a equipe remanescente na secretaria. No encontro, gravado por servidoras, a ministra relatou que, um mês e meio antes da demissão, buscou um entendimento para a saída de Carmen Foro, mas que ela “não levou muito a sério” e, quando percebeu que era para valer, entrou com atestado médico e pediu férias.
Cida aparece nas gravações dizendo que, caso demitisse também as demais colaboradoras trazidas por Carmen a Brasília, buscaria aumentar “recursos” para entidades locais no Pará e até “dinheiro fora do País” para uma futura campanha eleitoral da ex-secretária, no ano que vem.
“Eu disse para ela que a gente tinha que construir uma saída, porque ela estava muito mais como candidata no Pará do que como secretária nacional. Que a gente construísse a candidatura dela. (…) Atrás de diversos órgãos e instituições, para que ela conseguisse cumprir uma tarefa na COP-30 (…) e ao mesmo tempo a gente começasse a lutar recursos para que o pessoal dela sobrevivesse lá no Pará”, afirmou Cida Gonçalves, segundo uma das gravações.
Em outro momento, na mesma reunião, é possível ouvir Cida falando do risco que a equipe ligada a Carmen perdesse o emprego: “A gente aumentaria o recurso para a questão das entidades lá. Eu correria atrás de dinheiro fora do País, para ter recursos para que vocês fossem o suporte da campanha dela daqui até 2026.”
O dossiê enviado aos órgãos federais não especifica que função Carmen Foro viria a desempenhar na COP-30. Ao falar do tema, a ministra não detalhou na gravação qual seria a “tarefa” pensada para ela na cúpula sobre mudança do clima. Tampouco explicou que de onde viriam os recursos que prometeu ampliar, a que entidades pretendia destiná-los, nem a origem do dinheiro no exterior que planejava buscar com vistas às eleições de 2026.
No áudio obtido pelo Estadão, a ministra afirmou ainda que apoiaria eventual nova candidatura de Carmen Foro e indicou disposição de “montar uma estratégia”, porque a secretária teria que “dobrar” a votação anterior: “Porque (a demissão) não significa que eu não quero que a Carmen eleita, tá gente? Ela continua sendo minha candidata prioritária”.
Em 2022, Carmen Foro candidatou-se pela primeira vez a deputada federal e obteve 36 mil votos. Ela é a segunda suplente no Pará.
Julgamento na Comissão de Ética
As gravações fazem parte do acervo documental de denúncias formalizadas, em outubro de 2024, contra a ministra e outras autoridades da pasta, entre elas, a secretária-executiva Maria Helena Guarezi. Como mostrou o Estadão, ex-servidoras acusaram-nas de supostas práticas de assédio moral. As denúncias foram encaminhas à Controladoria Geral da União (CGU) e à Comissão de Ética.
A ministra e a então secretária, que não foi escolha pessoal de Cida, estavam em choque por discordâncias políticas e de gestão. Até a relação prévia da sindicalista com Lula e uma reunião que estava sendo agendada com o presidente para tratar de temas sócio-ambientais virou motivo de disputa.
A ministra dizia que a ex-secretária se comportava mais como alguém com ambições políticas regionais do que com dedicação nacional e que, embora a reconhecesse como uma liderança política, não a considerava uma “boa gestora”.
Quatro meses antes da proposta verbalizada pela ministra, Carmen Foro teria sido vítima de uma manifestação de teor racista, durante reunião na Escola Nacional de Administração Pública (Enap). Segundo a denúncia, Carmen Foro teria sido chamada a atenção, ao se levantar, por Maria Helena Guarezi.
A secretária-executiva teria comentado de forma “depreciativa” que Carmen deveria permanecer sentada porque “seu cabelo estava atrapalhando a visão”. Carmen Foro, que possui cabelo crespo, queixou-se a antigas colaboradoras que ficou emocionalmente abalada com o episódio.
A defesa da ministra contesta acusações
A ministra soube do caso, segundo denunciantes, mas não explicou que providências adotou. A defesa de Cida diz que ela não poderia agir no caso do suposto racismo sem ter uma denúncia formalizada por Carmen e, portanto, não teria se omitido como ministra de Estado.
“A ministra jamais poderia pedir a instauração de um procedimento sobre o fato que ela não presenciou e que a suposta vítima, a alegada vítima, a gente nem sabe se pode chamar de vítima, não quis levar para frente”, disse o advogado Bruno Salles Ribeiro, que representa Cida. “Clima de racismo no ministério nunca existiu. Nunca teve comoção de pessoas dizendo que aconteciam fatos racistas no ministério.”
Bruno Salles Ribeiro disse que já prestou esclarecimentos à Comissão de Ética e que, em linhas gerais, a defesa negou a prática de xenofobia e de assédio moral por parte da ministra e que ela não se omitiu no caso suspeito de racismo. Ele também nega que a ministra tenha feito qualquer oferta para a secretária demitida.
“A ministra não estava falando ‘eu vou atrás de dinheiro’. Isso é uma corruptela, que a gente faz quando está falando informalmente. Eu poderia falar assim para você, ‘ó, se eu fosse você, eu correria atrás’. Agora, quando eu estou falando com você informalmente, numa gravação clandestina, você fala, ‘ó, eu correria atrás de recursos, eu iria para o exterior, eu faria isso’. É o que uma pessoa na sociedade civil poderia fazer para fortalecer a candidatura”, disse o advogado.
Em nota, o Ministério das Mulheres afirmou que Cida Gonçalves avaliava que Carmen Foro, mesmo exonerada, “poderia ser uma boa articuladora na Conferência internacional do clima”, mas nunca ofereceu a ajuda financeira ou recursos do governo.
“Em nenhum momento, a ministra diz que iria buscar dinheiro para a campanha da ex-secretária, dentro ou fora do País. A ministra jamais participou das articulações eleitorais de Carmen Foro, embora acreditasse que ela seria, sim, uma boa candidata. Na fala da ministra à equipe, ela destaca exatamente o contraponto entre as funções administrativas de Carmen Foro e suas funções políticas que, em sua visão, eram aquelas que estavam sendo priorizadas pela ex-secretária. Entre as atividades que poderiam ser executadas pela ex-secretária, fora do Ministério e na articulação da sociedade civil, estavam, justamente, a elaboração de planos e busca de recursos para a execução de projetos de interesse de sua base eleitoral. Isso fica bastante claro no encadeamento lógico do áudio transcrito: (i) a ex-secretária estava sendo desligada, (ii) ela poderia desempenhar atividades políticas fora do ministério, inclusive com a busca de recursos e (iii) isso não significava que a ministra era contra sua candidatura”, diz o ministério, acrescentando: “É extremamente importante pontuar, para que eventuais distorções dolosas possam ser coibidas e não precisem ser contestadas judicialmente que, quando a ministra menciona o levantamento de recursos está aludindo a atividades de articulação política que poderiam ser executadas fora do Ministério e, obviamente, não por ela”.
Reforma ministerial
Integrantes do governo Lula admitem que Cida Gonçalves pode ser incluída na reforma ministerial do governo Lula. Parte da equipe do ministério, no entanto, passou a ver chances, nos últimos dias, de que Cida consiga permanecer por mais tempo como ministra. Entre a denúncia de outubro passado e o julgamento do processo, Cida agiu na pasta. Há dez dias, o Ministério das Mulheres instituiu um plano de enfrentamento ao assédio e à discriminação.
Na última segunda-feira, dia 17, a ministra recebeu homenagem durante o encontro de mulheres do Prerrogativas, grupo de advogados e juristas próximo do PT, que emplacou uma série de membros e indicados em cargos-chave do governo Lula.
Estiveram no jantar procuradoras, advogadas, chefes de gabinete, assessoras especiais e secretárias nacionais do governo. A ministra Anielle Franco, da Igualdade Racial, compareceu.
Quatro dos sete conselheiros da CEP fazem parte do grupo: Manoel Caetano Ferreira Filho, presidente atual da comissão, Caroline Proner, Marcelise de Miranda Azevedo e Georghio Alessandro Tomelin.
O advogado de defesa da ministra é um dos coordenadores do Prerrogativas. A aposta do entorno de Cida é que o caso será arquivado por falta de materialidade. A defesa da ministra disse que ainda não houve julgamento de admissibilidade da denúncia.
O caso é relatado por Edvaldo Nilo de Almeida. Na atual composição da CEP, ele é único conselheiro remanescente dos indicados no governo Jair Bolsonaro.