A discussão aberta no governo federal sobre a meta fiscal para 2024 – revelada por uma declaração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no fim de outubro – vai além do impacto nos relatórios de governo e na confiança de investidores.
Uma eventual mudança na meta, para prever déficit público no próximo ano, ajudaria o governo a minimizar os cortes de gastos para cumprir o prometido. E com isso, a reduzir o impacto nos investimentos em infraestrutura, como obras do novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), em pleno ano de eleições municipais.
A explicação, dada por especialistas ao g1 e à TV Globo, está ligada ao “arcabouço fiscal”, ou seja, à nova regra das contas públicas aprovada pelo Congresso Nacional em agosto deste ano. O mecanismo veio para substituir o antigo teto de gastos – que vigorou entre 2017 e meados deste ano.
▶️ A meta fiscal estabelece qual deverá ser o equilíbrio (ou desequilíbrio máximo) entre o que o governo arrecada e o que ele gasta.
▶️ Até o momento, o Executivo incluiu nos projetos de orçamento para 2024 uma meta de “déficit zero” – ou seja, gastar apenas o valor arrecadado, sem contrair dívida.
▶️ O problema é que, para essa previsão, a área econômica incluiu expectativas de arrecadação que ainda não foram aprovadas pelo Congresso e, talvez, não se realizem.
▶️ Se isso acontecer, o governo precisará cortar gastos para garantir o equilíbrio. Quando maior o desequilíbrio, maior a necessidade de corte.
▶️ Por isso, o governo começou a discutir trocar o déficit zero por um resultado negativo de 0,25% a 0,5% do PIB. Assim, poderia cortar menos despesas e manter mais investimentos.
“Tendo a obrigação de contingenciar [bloquear recursos], o governo tem de adotar medidas pelo lado da receita. E se não conseguir equilibrar, vai ter de cortar despesa discricionária [gasto livre dos ministérios] (…) O investimento acaba sendo afetado, e diminui um pouco o alcance em um ano eleitoral”, afirmou Ricardo Volpe, consultor da Câmara.
De acordo com Vilma Pinto, diretora da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal, há uma incerteza maior sobre a obtenção de receitas extraordinárias, buscadas pela equipe econômica, para tentar zerar o déficit fiscal em 2024.
“A dificuldade de se alcançar o volume necessário de receitas num curto espaço de tempo pode estar motivando a discussão (..) Caso a meta seja revista para baixo, o volume a ser contingenciado [bloqueado] poderá ser menor, uma vez que o alcance dessa meta será menos incerto que a atual”, avaliou Vilma Pinto, da Instituição Fiscal Independente.
Mudança da meta fiscal
As indicações de que a meta fiscal de 2024 poderia ser alterada começaram em 27 de outubro, quando Lula afirmou a jornalistas que o país não precisava de uma meta fiscal zero no ano que vem.
“Eu não quero fazer corte de investimentos de obras. Se o Brasil tiver um déficit de 0,5%, o que que é? De 0,25%. O que é? Nada”, disse Lula na última semana.
Nesta sexta-feira (2), Lula voltou a defender que o governo faça investimentos e disse que “dinheiro bom é dinheiro transformado em obra”.
Ao longo da semana, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, se irritou com jornalistas e evitou responder se a meta do próximo ano seria alterada. o relator da proposta da LDO de 2024, deputado Danilo Forte (União-CE), já admitiu que ela pode ser revista. O texto ainda precisa ser votado pela Câmara e Senado.
De acordo com o blog do jornalista da GloboNews Gerson Camarotti, colunista do g1, a nova meta fiscal para 2024 será apresentada por emenda ao Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) em 16 de novembro, com previsão de déficit em torno de 0,5%, segundo fontes.
Em conversas com o presidente Lula nos últimos dias, o ministro Fernando Haddad tenta convencê-lo a tomar a decisão sobre mudança da meta fiscal apenas em março, quando a área econômica precisa apresentar o relatório de receitas e despesas. A informação é do blog da jornalista Ana Flor.
Arcabouço fiscal
Na primeira versão do arcabouço fiscal, enviado pela área econômica ao Congresso Nacional, a proposta era de acabar com os chamados “bloqueios preventivos” de recursos orçamentários para atingir as metas fiscais.
O texto, entretanto, foi alterado pelo relator na Câmara dos Deputados, Cláudio Cajado (PP-BA), e os bloqueios preventivos (para atingir as metas, que existiam na regra anterior, do teto de gastos) foram mantidos na regra fiscal.
Vilma Pinto, da Instituição Fiscal Independente, lembra ainda que o relator incluiu outro dispositivo que impede bloqueios acima de 25% das chamadas “despesas discricionárias” – os gastos livres do governo e que podem ser cortados.
Entre os gastos “discricionários”, estão despesas dos ministérios – incluindo áreas em saúde e educação e, principalmente, investimentos em infraestrutura.
Do outro lado, estão os gastos obrigatórios, como benefícios previdenciários e salários de servidores, que não podem sofrer bloqueios.
O objetivo de limitar o bloqueio de despesas livres a 25% do valor total – incluído no arcabouço fiscal aprovado pelo Legislativo e sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva – é de “preservar um nível mínimo de despesas discricionárias necessárias ao funcionamento regular da administração pública”.
De acordo com nota técnica da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira (Conof) da Câmara dos Deputados sobre o arcabouço fiscal, entretanto, esse núcleo de 25% em gastos que não pode ser bloqueado não inclui projetos e investimentos – pois esses não englobam o “funcionamento” da máquina pública.
Arrecadação federal
Para atingir a meta fiscal, o governo conta com duas variáveis: a arrecadação federal e os gastos públicos.
Se a arrecadação não apresenta um bom desempenho, por exemplo, o governo pode ser obrigado a bloquear despesas para atingir a meta fiscal que está na Lei de Diretrizes Orçamentárias.
E os números oficiais da arrecadação federal não são bons. Em setembro, foi registrada a quarta queda consecutiva. E na parcial dos nove primeiros meses deste ano, o recuo real foi de 0,8% sobre o mesmo período do ano passado.
A explicação da Receita Federal é que fatores registrados em 2022, como a alta dos preços de produtos básicos (como minério de ferro e petróleo) não estão mais presentes.
Isso está relacionado com a desaceleração da economia mundial em um cenário de alta das taxas de juros por vários países, para conter a inflação.
Ao mesmo tempo, as medidas que a área econômica busca passar no Congresso para aumentar a arrecadação, como cobrança de ‘offshores’ e fundos exclusivos, mudanças no mecanismo dos juros sobre capital próprio das empresas, ou até mesmo o fim de subvenções dadas por estados com impacto em impostos federais, caminham a passos lentos.
O cálculo da equipe econômica é de que serão necessários R$ 168 bilhões a mais de arrecadação para que atingir a meta de zerar o déficit das contas do governo em 2024.
Diante do comportamento ruim da arrecadação nos últimos meses, fruto da desaceleração da economia mundial, e da dificuldade para aprovar medidas no Legislativo, aumenta a probabilidade de bloqueio de gastos para cumprir a meta fiscal de 2024 – se ela for mantida em déficit zero.
Ponto a ponto
A proposta de orçamento federal para 2024 prevê R$ 211,9 bilhões para os gastos “discricionários”, que não podem ser bloqueados. Deste modo, eventuais bloqueios de despesas podem chegar a até R$ 53 bilhões (25% do total).
Com uma meta de zerar o déficit do governo em 2024 e arrecadação em desaceleração, é maior a probabilidade de se ter de efetuar um bloqueio preventivo de recursos para atingí-la.
Esses bloqueios (com déficit zero), que atingiriam principalmente investimentos em infraestrutura, entre eles gastos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), aconteceriam em um ano de eleições municipais.
Se a meta for reduzida para um déficit fiscal, a probabilidade de o governo ter de efetuar bloqueios em investimentos públicos se reduz.
Impacto na dívida pública
Analistas apontam que, ao mudar a meta fiscal para um déficit em 2024, ao invés de um resultado próximo de zero, a diferença será financiada por meio de aumento da dívida pública.
“O caminho é reconhecer um déficit maior e financiar como dívida. Os juros vão ser pressionados, e a inflação continua pressionada com emissão de moeda [por meio de títulos públicos no mercado]. E, também, o investidor retrai o investimento produtivo pois fica na insegurança”, avaliou Ricardo Volpe, consultor da Câmara.
Em agosto, a dívida do setor público consolidado somou 74,4% do PIB – o equivalente a R$ 7,77 trilhões. Na comparação com o final de 2022, quando estava em R$ 7,22 trilhões, ou 72,9% do PIB (dado atualizado), porém, houve uma alta de 1,5 ponto percentual.
O reequilíbrio das contas públicas é considerado importante pelo mercado financeiro para evitar uma disparada da dívida brasileira – indicador que é acompanhado com atenção pelas agências de classificação de risco.
Mesmo com a proposta do arcabouço fiscal, os analistas do mercado financeiro estimaram, na semana passada, que a dívida pública brasileira deve atingir 87,2% do PIB em 2032.
Em cerca de 90% do PIB, a dívida brasileira poderá superar o patamar de nações emergentes e estar bem acima do estimado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) para a América Latina. As previsões, entretanto, vão somente até 2027.