Cinco meses depois de ter invadido a Ucrânia, a Rússia admitiu pela primeira vez que tem como objetivo na guerra a derrubada do presidente Volodimir Zelenski do poder em Kiev.
“Russos e ucranianos vão continuar vivendo juntos, e nós certamente iremos ajudar o povo ucraniano a se livrar do regime”, afirmou o chanceler russo, Serguei Lavrov, para quem Moscou está determinada a ajudar os vizinhos “a se livrarem do fardo desse regime absolutamente inaceitável”.
A frase foi dita no domingo (24) a diplomatas durante uma cúpula da Liga Árabe no Cairo. Segundo agências de notícias, Lavrov voltou a acusar o Ocidente por ter insuflado a Ucrânia contra a Rússia, supostamente com o objetivo de provocar a guerra.
A admissão de um segredo de polichinelo é bastante significativa do estágio atual do conflito, iniciado em 24 de fevereiro com ataques em múltiplas frentes contra as forças ucranianas por ordem do presidente Vladimir Putin.
Naquele momento, o russo sugeriu ações que claramente indicavam a vontade de derrubar Zelenski: afirmou que a operação visava “desmilitarizar e desnazificar” o vizinho, a quem acusava de proteger políticos de orientação neonazista, e “liberar o Donbass” –o leste russófono a Ucrânia.
Putin chegou a incitar militares ucranianos contra Zelenski, mas nunca advogou diretamente sua remoção. Suas ações, claro, foram na linha contrária: em três dias de guerra havia soldados russos na periferia de Kiev.
O impulso inicial, contudo, era falho, com frentes divergentes e pouca concentração de forças. A dura resistência ucraniana às más táticas russas acabaram frustrando a ideia de uma tomada da capital ucraniana que levasse ao colapso do governo Zelenski.
Os Estados Unidos, após sugerir ao presidente ucraniano que fugisse do país, passaram então a liderar uma campanha de fornecimento de armamento ocidental para a Ucrânia. É um processo gradativo, associado ao duro mas até aqui relativamente ineficaz regime de sanções contra Moscou, devido ao temor de um embate direto da Otan (aliança militar ocidental) com os russos.
Em meio às negociações iniciais para tentar conter o conflito, a Rússia afirmou então que não tinha interesse em derrubar Zelenski ou ocupar a Ucrânia. Seu objetivo declarado, de resto um dos motivos estratégicos da guerra, era o de manter o vizinho fora da Otan e outras estruturas do Ocidente.
A modulação do discurso ante a realidade no campo de batalha parece ter tomado agora caminho inverso. Seis meses depois, a Rússia se reorganizou e estabeleceu uma posição de força no Donbass e no sul do país, unido a região à Crimeia, península que Putin havia anexado sem dar um tiro em 2014.
Na semana passada, coube a Lavrov começar a explicitar os planos atuais, ao dizer que a ambição russa se estendia ao sul ucraniano. Toda aquela faixa é vista em meios nacionalistas russos como historicamente um domínio de Moscou, e é chamada de Nova Rússia.
A dúvida colocada é se Putin buscaria uma acomodação após avançar sobre o restante da província de Donetsk que está sob controle de Kiev, completando assim a tomada do Donbass, ou se buscaria expandir sua invasão ao restante da costa sul ucraniana –começando pelo porto de Odessa que segue a bombardear, apesar do acordo para exportação de grãos represados lá.
Em abril, um general russo sugeriu unificar toda a região sob comando de Moscou até a Transdnístria, faixa com cerca de 500 mil habitantes na Moldova que é um protetorado russo, um dos cadáveres insepultos da dissolução da União Soviética, em 1991.
A julgar pela escalada das ambições pintada por Lavrov, Putin quer mais –ou está subindo o cacife na mesa de olho em negociações futuras.
Seja como for, as declarações do chanceler caem como uma luva para Zelenski, que enfrenta um momento de fadiga extrema entre seus aliados ocidentais devido ao impacto econômico e político da guerra na Europa, para tentar galvanizar apoio ante a leitura de que Moscou ao fim quer apenas a submissão total da Ucrânia –e que pode não parar aí.