Pequim envia 1 milhão de doses para a Sérvia, Moscou promete outras tantas. É preciso ser lamentavelmente ingênuo para crer que isso não terá um preço. O Ocidente não pode seguir passivo, opina Miodrag Soric.
Para um autocrata, as melhores verdades são aquelas que ele próprio inventa. Quando o vírus Sars-Cov-2 golpeou a Europa no início de 2020, o presidente da Sérvia, Aleksandar Vučić, não hesitou em minimizar o perigo.
Então, ao descobrir que a situação era, de fato, séria, impôs um confinamento mais rigoroso do que em quase qualquer outro lugar da Europa. Poucos meses depois, ele declarou vitória sobre o coronavírus, por acaso pouco antes das eleições parlamentares no país. Quem diria?
O chefe de Estado sérvio retomou agora a luta contra a covid-19, e os meios de comunicação favoráveis ao governo estão cuidando para que todo mundo fique sabendo disso. Eles também recorda, a todos que a Sérvia está em melhor situação do que o resto da Europa – tudo graças à sábia liderança de Vučić.
“Herói do povo”?
Se a pandemia não fosse tão séria – fatalmente séria, na realidade – poderia ser até engraçado observar todos os fiascos e cifras fictícias que Belgrado tem divulgado.
Uma volta pela capital sérvia dá quase a impressão de que tudo está na mais perfeita ordem, que a pandemia passou ao largo do país, a caminho de outro lugar qualquer: bares e restaurantes estão em funcionamento, o povo segue se aglomerando nos shoppings. A maioria parece ter se esquecido das máscaras. E quem as usa, usa errado, deixando o nariz completamente de fora.
O envio de 1 milhão de doses de vacina da China e a promessa de mais outras da Rússia levantou o ânimo de muitos na Sérvia. Esse sentimento não passou despercebido pelo líder sérvio, que se apressou em contar a Deus e o mundo sobre suas conquistas relacionadas à covid-19.
Vučić continua a se retratar como o protetor do povo sérvio, um funcionário público altruísta trabalhando 24 horas por dia para assegurar o máximo possível das vacinas necessárias.
Contudo, seu tom e estilo diante das câmeras, além de fatualmente errados, são altamente inadequados: ele fala de uma “guerra” entre os países para estocar doses da vacina anti-coronavírus, com o aparente fim de se apresentar como herói do povo.
Alguns líderes são meros narcisistas que fazem o que fazem para alimentar os próprios egos. A coisa fica embaraçosa quando, no processo, eles olham com desprezo para outros países como se, de algum modo, fossem melhores.
A Sérvia não tem motivo para se gabar nem se colocar num pedestal, considerando-se que seu sistema de saúde está em total confusão, e muitos apontam para o presidente como principal responsável. No que concerne as estatísticas oficiais de Belgrado sobre o coronavírus, ninguém coloca a mão no fogo por esses números.
Pequim tece laços de dependência
As vacinas da Rússia e da China não estão aprovadas nos países ocidentais. E por isso a situação é tão mais delicada para a União Europeia e os Estados Unidos. Esses atrasos custarão vidas, e os governos de toda a Europa estão sob pressão para suprir as necessidades de seus cidadãos.
No entanto isso não pode ocorrer à custa de outros: a solidariedade dentro do bloco é inegociável. A Alemanha, o mais rico e maior membro da UE, não passará à frente na fila se for para prejudicar os países europeus menores. A Sérvia pode não ser Estado-membro da UE, mas, junto com outras nações dos Bálcãs, tem recebido milhões de euros de Bruxelas para combater a pandemia – um fato que Belgrado gosta de ignorar.
É preciso ser escandalosamente ingênuo para acreditar que as vacinas da China chegam sem qualquer condição implícita, que elas só são enviadas por razões humanitárias, ou como pedido de desculpas do país onde se crê que a pandemia começou.
A China é um país que pensa no longo prazo. Embora tenha tido dificuldades de comprar um lugar nas companhias da Alemanha, Reino Unido ou EUA, isso é muito mais fácil e barato em países como a Sérvia ou a Hungria. E aí estes ficam dependentes de Pequim, ecônomica e politicamente, como tem ocorrido recentemente na América Latina e na África.
O fato de o Ocidente estar passivo, deixando isso acontecer, é um erro que pode e deve ser criticado. O posicionamento do governo comunista na região está crescendo a olhos vistos. Ao fornecer vacinas, a China está não só prometendo ajuda, como prestando-a de modo altamente prático.
Seria um grande erro estratégico o Ocidente permitir a Rússia e a China ampliarem sua influência nos Bálcãs Ocidentais. No mínimo, a UE deveria apoiar os esforços de Montenegro para integrar o bloco europeu. A população local já se libertou de partes do passado comunista do país.
Se a meta é mostrar que promover a democracia compensa, então Montenegro é um local onde a União Europeia pode provar esse argumento de forma concreta.