Em fevereiro deste ano, após atingir a idade limite de 62 anos, aposentei-me de minhas funções como presidente de banco, encerrando uma gratificante carreira de 40 anos como executivo. Disponho agora de tempo livre, um luxo que até aqui me foi inacessível. Administro com zelo esta nova riqueza, pois sei que ela é facilmente esgotável pelas muitas oportunidades que surgem. É necessário resistir a uma certa angústia diante da agenda vazia, que impele muitas vezes a as aceitar apressadamente.
Esta nova realidade pessoal me permite realizar o desejo antigo de aprofundar meus conhecimentos sobre a vida e obra de escritores que desde há muito me fascinam. Nestes últimos meses, meu interesse se deteve sobre dois deles em particular, Stefan Zweig e Sandor Marai.
Conforme o jornal Folha de S. Paulo, a leitura de seus livros, memórias e biografias escritas por terceiros revela, entre outras coisas, que estes dois homens geniais viram-se, em momentos diferentes da história e de suas vidas, diante da decisão de abandonar suas respectivas pátrias. Ambos tomaram esta decisão tempestivamente, antes que ela se tornasse imprescindível, ou impossível, condições que lamentavelmente tendem a ocorrer simultaneamente.
Zweig, austríaco e judeu, decidiu abandonar a Áustria aos 52 anos de idade no início de 1934, quatro anos antes que a anexação do país à Alemanha de Hitler provocasse a perda definitiva de sua nacionalidade. Marai, nascido na Hungria em 1900, emigrou em 1948, ao dar-se conta de que a ocupação soviética em seu país não seria passageira e que sua liberdade como escritor estaria irremediavelmente comprometida pelo regime e pela censura comunista. Oito anos depois, a violenta repressão à revolução húngara demonstrou cabalmente o acerto de seu julgamento.
Zweig era a seu tempo provavelmente o escritor mais vendido em língua alemã e Marai indubitavelmente o mais popular de seu país. Para nenhum dos dois a emigração foi uma decisão fácil; Zweig viria a suicidar-se em Petrópolis no início de 1942, sem jamais se ter adaptado à vida de exilado, e Marai viveu bastante recluso nos EUA, até pôr fim a seus dias em 1989. Não é fácil viver longe de sua língua e de suas raízes.
A leitura das memórias de ambos os escritores deixa transparecer claramente a escalada do totalitarismo em seus respectivos países e épocas. Aos poucos a liberdade vai sendo restringida, as instituições enfraquecem e cedem, à medida em que a violência oficial, ou não, faz-se cada vez mais presente no cotidiano. Impossível afastar um crescente sentimento de desconforto durante a leitura.
Recentemente houve eleições no Peru. No segundo turno, a população peruana teve que optar entre os dois candidatos situados nos extremos opostos do espectro ideológico. A extrema direita e extrema esquerda se enfrentaram através de representantes fracos, manchados por um passado de violência e corrupção, ou flagrantemente despreparados. O resultado deixa dúvidas sobre a evolução política de um país dividido.
Ocorre que tal situação não era a desejada pela maior parte dos eleitores peruanos, nem tampouco era inevitável. No primeiro turno, os dois candidatos finalistas tiveram respectivamente 19% e 13% dos votos, enquanto os três seguintes —cada qual com seus problemas, mas todos mais próximos do centro— tiveram aproximadamente 12%, 12% e 9%. Provavelmente, qualquer destes três candidatos teria vencido o segundo turno contra os candidatos extremistas, mas a divisão do centro projetou os peruanos a um cenário radical.
O exemplo peruano é um alerta gritante quanto aos riscos e perspectivas das nossas eleições em 2022. As pesquisas apontam os candidatos dos extremos como os líderes da corrida eleitoral, enquanto ao menos meia dúzia de representantes de diversas tendências mais próximas ao centro dividem as preferências da maior parte dos eleitores.
É fundamental que se articule um entendimento entre estes candidatos e seus partidos, para que em dado momento da campanha todos cedam em favor daquele que apresente maiores chances de ir ao segundo turno. Não se trata de escolher o melhor candidato. Infelizmente, a busca do melhor leva justamente à divisão que se verificou no Peru, uma vez que a democracia permite às pessoas divergirem sobre o que consideram melhor. Trata-se de eleger aquele com mais possibilidades de oferecer ao país uma oportunidade de escapar à escolha compulsória entre os extremos. Creio que Zweig e Marai aprovariam.