Paulo Hartung (ex-MDB), governador do Espírito Santo, comeu “um saco de sal grosso”, mas pôde atestar, antes de encerrar sua gestão e a carreira política neste ano, que “as recompensas não tardam para quem se desvia dos atalhos das facilidades ilusórias e enganadoras”.
É assim que ele descreve a travessia que expõe no livro “Espírito Santo – Como o governo capixaba enfrentou a crise, reconquistou o equilíbrio fiscal e inovou em políticas sociais”, que será lançado nesta quinta-feira (13).
O compromisso com o ajuste fiscal, ou seja, o corte de gastos para enquadrar a queda de receitas devido à crise econômica, que é a tônica do livro, persiste também no lançamento da obra: sem eventos, haverá apenas a disponibilização para compra online da versão digital na Amazon por cerca de R$ 19.
A própria empresa americana ficará encarregada de fazer a impressão caso o consumidor ordene o livro impresso. “Fica uma coisa mais dentro da atualidade”, diz Hartung à imprensa.
O livro lembra, principalmente em artigo de Ana Paula Vescovi, que foi secretária da Fazenda no estado e hoje é secretária Executiva do Ministério da Fazenda, que a necessidade de colocar as contas públicas em ordem e de buscar um novo modelo de gestão, obsessão dos candidatos de Norte a Sul nestas eleições, ficou maquiada no debate eleitoral de 2014.
Foi a partir do impeachment de Dilma Rousseff (PT), justamente por uma irregularidade fiscal, e do agravamento da recessão que a discussão se impôs no país. O livro prega que o Espírito Santo, único estado a receber nota máxima da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) quanto à capacidade de pagamento, despontou como vanguarda “trilhando a boa e justa caminhada daqueles que fizeram o dever de casa no tempo certo e na medida correta”.
“Hoje tem um modelo que dá certo, o Espírito Santo é uma boa referência nesse quadro, e tem o modelo que dá errado, que é essa coisa de não enfrentar os problemas com medo de incompreensão”, afirmou o governador.
Após ter sido governador três vezes (2003-2010 e 2015-2018), além de senador, deputado e prefeito, Hartung quer, a partir do ano que vem, “apresentar ao país boas propostas” e provocar “um tensionamento da agenda na direção das propostas corretas”. “O país não pode esperar 2022. O país não aguenta mais esticar essa crise.”
Na avaliação de Hartung, porém, o compromisso de Jair Bolsonaro (PSL), presidente eleito, com essa agenda reformista não está claro.
“A impressão que me dá é que tem dois governos. Estou vendo um bate-cabeça. Há dois pensamentos, um mais reformista e um mais ligado às corporações”, diz o governador. “É muito importante que governo se encontre e tenha proposta clara para os problemas cruciais do país.”
Segundo Hartung, a eleição e a indicação de Sergio Moro como ministro da Justiça deram a Bolsonaro capital político suficiente para, aliado à tolerância da população e do Congresso típicas de um início de governo, implementar reformas, como a da Previdência.
“O inimigo desse governo é o tempo. Capital político é como validade de remédio, se você não usa, desaparece daqui a pouco”, diz.
“Se o governo está achando que vai manter o prestígio da eleição com essa aliança corporativa, não vai. Só mantém prestígio se colocar a economia para crescer e gerar emprego”, afirma Hartung ao ser questionado sobre a disposição de Bolsonaro em enfrentar privilégios das classes militares, por exemplo.
Para o governador, ceder ao aumento dos salários diante da greve da Polícia Militar de 2017 seria ceder ao corporativismo. No período, 227 pessoas morreram no estado.
“Não tínhamos como ampliar quaisquer gastos sem impor ao conjunto da população capixaba as graves consequências do descontrole das contas públicas, comprometendo serviços básicos e essenciais a todos. A escolha era clara, entre privilegiar demandas corporativas ou atender os interesses coletivos dos cidadãos”, escreve no livro, que trata brevemente do episódio.
Hartung classifica a greve de “tentativa irresponsável de destabilização”, “movimento inadmissível” e “afronta ao Estado democrático de Direito”.
Na época, Bolsonaro gravou um vídeo dizendo que os governos “não podem se prevalecer da disciplina do militar para subjugá-lo”. Hartung diz esperar que a postura do presidente eleito seja de abrir igualdade de oportunidades e não manter desigualdades.
“No discurso de diplomação, ele se coloca como presidente de todos os brasileiros. Para isso, vai ter que soltar as amarras corporativas.”
Hartung declarou apoio a Geraldo Alckmin (PSDB) no primeiro turno e tinha simpatia por outros representantes da agenda reformista, Marina Silva (Rede) e Henrique Meirelles (MDB), mas essa proposta não chegou ao segundo turno. O governador, então, votou em Fernando Haddad (PT) “pela questão democrática”.
“Mas a minha preocupação da época da campanha não está presente hoje. A escolha do Moro ajudou a mostrar que há compromisso com a Constituição Federal, as leis e a democracia”, diz.
No Espírito Santo, Hartung não buscou um novo mandato. Entregará o governo para seu antecessor, Renato Casagrande (PSB), que é implicitamente criticado no livro, quando se fala em descontrole das contas na gestão anterior.
“Temos que olhar para frente e não para trás. Nada impede que o novo governo trilhe um caminho fiscal equilibrado”, minimiza Hartung. O clima na transição é de cooperação.
Para o governador, seu livro serve a dois propósitos: “demonstrar que é possível melhorar a contraprestação de serviços públicos no Brasil, mesmo com o obstáculo de uma estrutura pública, de leis e regulamentos, pré-histórica”. E “quebrar um paradigma na discussão brasileira, de que é possível fazer ajuste fiscal e fazer políticas sociais ao mesmo tempo”.
“Quem cuida das contas é que tem capacidade de cuidar das pessoas”, diz. A obra, ao dedicar um capítulo para cada área da administração pública, como saúde e educação, por exemplo, funciona como um registro histórico de feitos do governo -a obtenção das melhores notas no ensino médio no país, por exemplo.
Também dá dicas de liderança. “Fácil é fazer o errado, levianamente esperando alguma satisfação momentânea, mas que cedo ou tarde entrega mesmo é muita dor de cabeça. Como bem sabemos, essa é a história do populismo no Brasil e na América Latina. Aliás, esta é a nossa visão do que deve ser um líder: aquele que, na encruzilhada do certo com o fácil, não hesita em trilhar o caminho que leva ao rumo da superação consistente, ainda que seja o mais desafiante.”
O governador tem sido procurado por governadores eleitos, como Romeu Zema (Novo-MG) e Eduardo Leite (PSDB-RS), para dar conselhos. “Não vejo problema de ser marinheiro de primeira viagem desde que, na montagem da equipe de governo, tenha gente que complemente o conhecimento do setor público”, recomenda Hartung aos novatos.
Ele deixou o MDB em novembro e não pretende se filiar a outro partido. Será conselheiro do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), voluntário na formação de líderes em organizações de renovação política, como o Renova e o Agora!, militante do Todos pela Educação e foi convidado para fazer parte de conselhos de empresas privadas.
Hartung também é autor de “Recortes” (2012), “O Espírito Santo no Debate Nacional” (2000) e “Os Caminhos de Vitória” (1997).