Além das disputas por espaço na composição do futuro governo e das fricções internas provocadas pela reunião de correntes divergentes de pensamento, a primeira semana de transição de governo expôs a formação de um grupo que patina na representatividade e, em sua maioria, é formado por homens e egressos de governos passados ou do Legislativo. Levantamento feito por Lucas Mathias, Bruno Góes e Paula Ferreira, do O Globo com base nos 90 nomes já anunciados — seja pelo coordenador-geral, Geraldo Alckmin (PSB), ou pelos próprios membros da equipe — mostra que há 64 homens e 26 mulheres entre os escolhidos para cuidar da passagem de bastão entre Jair Bolsonaro (PL) e Lula (PT). Além de um leque amplo com experiência nas burocracias partidárias, há 44 que já estiveram no Parlamento ou no Executivo — são 18 ex-ministros, em um grupo que reúne ocupantes da Esplanada nos anos Dilma, Lula, Fernando Henrique e José Sarney. Dos 58 nomes com filiação partidária identificada, 32 são do PT.
Decisivas, segundo as pesquisas de intenção de voto, para a vitória apertada de Lula sobre Bolsonaro — vantagem de dois milhões de votos, apenas 1,8 ponto percentual —, as mulheres têm presença bem inferior à dos homens no gabinete de transição. Ainda que Lula tenha frisado que a formação da equipe não está vinculada à do Ministério, o retrato sugere um futuro governo dominado por homens. Cenário distinto ao pregado pela agora aliada Simone Tebet (MDB-MS), que na campanha à Presidência defendeu um primeiro escalão com divisão paritária — Lula se esquivou da promessa na eleição e disse que iria “indicar as pessoas que têm capacidade para assumir determinados cargos”.
Tebet, aliás, integra um dos poucos núcleos com maioria de mulheres, o da Assistência Social, que ontem ganhou o reforço de Bela Gil, Renato Maluf (professor da UFRRJ, especialista em combate à fome) e Reinaldo Takarab (secretário executivo do MDB nacional). Na Economia, só há homens — incluindo Luciano Coutinho, ex-presidente do BNDES nos governos Lula e Dilma, também divulgado ontem —, enquanto na Saúde, a presença feminina é solitária — uma no Conselho Político. Logo no início da semana, integrantes da transição viram a necessidade de anunciar a participação de mulheres, já que as críticas, sobretudo nas redes sociais, ganhavam volume. Apesar da corrida — na quarta, quando Alckmin anunciou 36 nomes de uma vez só, 19 eram mulheres —, a participação seguiu tímida.
O raio-x da transição — Foto: Arte/Infografia
“Debate setorizado”
Nos quatro postos de coordenação abaixo de Alckmin, que lidera o grupo, há duas mulheres: a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, à frente da articulação política e a futura primeira-dama, Janja, responsável pela organização da posse. A maioria dos nomes femininos já anunciados, no entanto, está restrita a postos na área social. Das 26 escaladas, quatro participam da Assistência Social, quatro estão no grupo de Igualdade Racial, além das seis escolhidas para o núcleo das Mulheres. Nos dois setores que vão diagnosticar os desafios fiscais e de crescimento (Economia, além de Planejamento, Orçamento e Gestão), só há uma economista, Esther Dweck, que atuou no Ministério do Planejamento no governo Dilma. Desde a redemocratização, Zélia Cardoso de Mello, no governo de Fernando Collor, foi a única mulher a comandar o Ministério da Fazenda, onde ficou por pouco mais de um ano.
— O debate sobre o feminismo está muito setorizado. É definido um setor que vai tratar desses temas. Fora desse setor, ainda há a contradição, e o machismo permanece. Existe uma setorização em algo que precisa ser orgânico — analisa a cientista política Clarisse Gurgel, professora da Unirio.
A diferença é ainda maior se considerado o recorte de raça. A maior parte dos integrantes negros está concentrada nos grupos de Igualdade Racial, que tem Martvs Chagas, que foi secretário-executivo da pasta no governo Lula; Mulheres, em que uma das integrantes é Anielle Franco, irmã da ex-vereadora Marielle; e Direitos Humanos, com o advogado Silvio Almeida, por exemplo. O ex-ministro Henrique Paim, por sua vez, coordena o grupo da Educação, pasta que ocupou na gestão de Dilma. Após a nomeação, Anielle escreveu no Twitter que considera “também importante que nós, mulheres e pessoas negras, estejamos em todos os espaços de decisão de forma transversal. Somos qualificadas para estar em todos ministérios e secretarias”.
De Sarney a Dilma
Já a lista de integrantes da equipe com experiência prévia na política formal é extensa. Só de ex-ministros há 18, em grande parte remanescentes das gestões petistas de Lula e Dilma (casos de Guido Mantega, Nelson Barbosa, Aloizio Mercadante e a própria Gleisi, por exemplo). Há espaço também para emedebistas que foram das equipes de Fernando Henrique Cardoso (Renan Calheiros, que chefiou a Justiça) e José Sarney (Jader Barbalho, que esteve à frente da Previdência e do Desenvolvimento Agrário no fim dos anos 1980). A situação já vem gerando até embaraços internos. Na Saúde, há quatro ex-ocupantes da pasta na linha de frente, além de médicos consultores: Alexandre Padilha, Humberto Costa, José Gomes Temporão e Arthur Chioro.
Com tantos nomes de peso, deliberações e debates passaram a ser colegiados, o que dificulta a tomada de decisões rápidas. Na semana passada, foram distribuídas responsabilidades a cada um. Mesmo assim, permanece o sentimento de que não há hierarquia e quem terá ascendência sobre as resoluções de governo. Na quarta-feira, ao chegar ao CCBB, Padilha afirmou que o momento é de trabalhar no diagnóstico da saúde, sem citar políticas públicas que poderão ser adotadas. Já Humberto Costa listou prioridades, como a volta do Mais Médicos e uma vacinação em massa no início da gestão petista.