A aprovação de um novo calendário eleitoral pelo Tribunal Superior Eleitoral nesta semana organizou a linha do tempo com a qual os partidos poderão trabalhar nas eleições municipais. De 31 de agosto a 16 de setembro, convenções partidárias para escolher candidatos. Até 26 de setembro, o registro dessas candidaturas, cujo percentual mínimo de 30% deverá ser de mulheres, por lei. Mas a avaliação do que configura ou não burla a essa regra é um dos desafios que se colocam ao Tribunal Superior Eleitoral.
Essa discussão ficou evidente em dois recursos julgados pelo Plenário da corte em 4 de agosto. Em um deles, o colegiado anulou os votos e cassou os mandatos de toda uma coligação que elegeu candidatos na cidade de Imbé em 2016. Considerou fraude a candidatura de mulheres que não tiveram gasto de campanha e pediram votos para outros candidatos. Entendeu-se que as candidatas não tiveram o objetivo de disputar efetivamente o pleito.
Em outro caso, o TSE não viu motivos para concluir que o mesmo ocorreu no pleito para a Câmara Municipal de Pedro Laurentino (PI). As candidatas não receberam voto — pois sequer votaram em si mesmas —, não dispenderam gastos eleitorais, tampouco divulgaram suas candidaturas. Alegaram que desistiram durante a campanha. O Plenário então aplicou o princípio in dubio pro sufrágio. Nos dois casos, as decisões foram por maioria.
“Nenhum voto somada à ausência de destinação de fundo partidário, se isso não demonstra que o objetivo foi só de preencher cota de 30% de mulheres para lançar mais homens, então nunca vamos ter a comprovação. Dificilmente a candidata vai dizer que realmente combinou de fraudar a Justiça eleitoral”, criticou o ministro Alexandre de Moraes, responsável por impor o desafio de mensurar o que é fraude à cota de gênero na jurisprudência do TSE.
Para ele, há uma industrialização de candidaturas laranjas. “E isso é simplesmente a negativa do que se pretende com a ampliação da participação da mulher”, destacou o ministro. “Cada decisão da Justiça Eleitoral que sinaliza a necessidade dessa confissão dupla incentiva candidaturas laranjas”, completou.
O que é fraude?
As balizas jurisprudenciais da matéria foram definidas pelo TSE em 2019, no caso da eleição de 2016 para vereador do município de Valença (PI), e que virou leading case. Embora a cota de 30% tenha sido estabelecida pela Lei das Eleições em 2009 (artigo 10, parágrafo 3º), a corte superior só enfrentou a matéria dez anos depois. E fez definições importantes: por 4 a 3, assentou que a ocorrência de fraude derruba toda a coligação ou partido, não apenas os envolvidos.
Estabeleceu, principalmente, que não bastam apenas indícios; são necessárias provas objetivas e robustas para caracterizar o delito. Foi o que confirmou o ministro Tarcísio Vieira de Carvalho, ao afastar a ocorrência no caso de Pedro Laurentino (PI). “Fraude não se presume”, disse.
Ainda assim, as definições estão sendo estabelecidas aos poucos. O ministro Luís Felipe Salomão considera o tema complexo, já que depende da análise caso a caso. “Acabamos vinculados à moldura fática estabelecida pelo acórdão recorrido. Há indícios de fraude. No entanto, a jurisprudência foi construída no sentido de que não basta um único indício ou fator que aponte nessa direção. É preciso que o conjunto todo da obra seja contundente”, explicou.
Até então, as fraudes em cotas femininas eram analisadas depois da candidatura. Porém, de olho nas adequações para as eleições municipais, a corte eleitoral editou resolução que permite o controle já no momento do registro de candidatura. A resolução estabelece que, se o juiz tiver dúvidas sobre os documentos ou notar indícios de que a candidata não quis se candidatar ou não está integrada no partido, por exemplo, poderá pedir diligências para verificar o registro.
Cenário do possível
De acordo com a especialista Ezikelly Barros, pelo leading case é possível afirmar que a prática de algumas condutas poderão ensejar a configuração da fraude, como:
- disputar o mesmo cargo e pela mesma coligação/partido político que parentes (cônjuge ou filho), sem nenhuma notícia de animosidade entre eles;
- pedir votos para outro candidato que dispute o mesmo cargo almejado pela candidata;
- a ausência da realização de gastos eleitorais;
- votação ínfima (geralmente a candidata não possui sequer o próprio voto).
“Contudo, é evidente que essas condutas não serão consideradas isoladamente pela Justiça Eleitoral, mas que serão analisadas à luz de todo o acervo probatório do caso concreto”, diz a advogada.
Embora o tribunal esteja trabalhando para definir os critérios, o eleitoralista Fernando Neisser afirma que há certos pontos de insegurança jurídica. Segundo o advogado, existe uma zona nebulosa de entendimento nos casos em que uma candidata não abriu conta corrente, nas redes sociais não tem qualquer pedido de voto para si, ou ainda pediu voto para candidato homem.
Nos casos de prestações de contas, em que o campo de prova é amplo, Neisser diz que é difícil que os critérios sejam objetivos, sendo necessário avaliar caso a caso. Ele também chama atenção para os critérios que podem desaguar em desigualdade de gênero. “É preciso frisar que há desistências de campanha que são legítimas e isso pode acontecer por motivos pessoais da mulher. O que não podemos é exigir das mulheres mais do que aquilo que se exige dos homens, seria um ato machista”.
A advogada Bianca Gonçalves e Silva diz que também é preciso considerar que muitas mulheres estão entrando na disputa pela primeira vez, sob pena de afastar da política feminina ainda em construção. “Algumas não recebem apoio do partido, precisam colocar suas campanhas de pé muitas vezes com a ajuda de voluntários e, estando pela primeira vez na disputa, pode ser que haja uma dificuldade em se fazer conhecida, angariar votos”, explica.
Alcance da cota de gênero
A questão ganha relevância para o pleito em 2020 porque será o primeiro sem a celebração de coligações nas eleições proporcionais, conforme a minirreforma eleitoral de 2017 estabeleceu. Assim, a cota de gênero terá de ser observada por cada partido. Isso impede que alguns deles usem outros de escudo para preencher o percentual necessário.
A efetivação dessa ação afirmativa tem sido posta em prática pelo TSE. Em 2018, por exemplo, a corte decidiu que Fundo Eleitoral e tempo de rádio e TV devem reservar o mínimo de 30% para candidaturas femininas. Sendo que, se o número de candidatas representar mais que a cota, o repasse dos recursos deve ocorrer na mesma proporção.
Essa postura decorreu, inclusive, de decisão do Supremo Tribunal Federal, que em março de 2018 julgou procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade para derrubar a limitação de 15% que havia, por lei, da verba do Fundo Partidário destinada às candidatas.
A análise de Bianca Gonçalves e Silva é que, sem as coligações, os partidos que pretendam lançar candidatos à vereadores passarão a se preocupar em formar lideranças femininas capazes de concorrer em pé de igualdade com os homens.
A falta de coligação nas eleições proporcionais, diz, “sugere que os partidos passem a efetivamente investir os recursos de 5% do fundo partidário destinados à promoção, difusão e fomento da participação feminina na política, bem como o mínimo de 30% do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e do Fundo Partidário, tornando suas candidaturas competitivas o bastante a ponto de serem eleitas”.
Já em maio de 2020, o TSE afirmou ser aplicável reserva de gênero para mulheres nas eleições para órgãos partidários. A manifestação foi feita em consulta enviada à corte pela senadora Lídice da Mata. Não é regra fixada, no entanto. Ele não tem efeito vinculativo para a análise e a aprovação, por parte da Justiça Eleitoral, das anotações de órgãos partidários.