O PT defendia até pouco meses atrás a regulamentação dos motoristas e entregadores de aplicativo. A ideia era estender à categoria regras similares às dos trabalhadores com carteira assinada, como a garantia de uma remuneração mínima, limite de horário e contribuição previdenciária. Há algumas décadas, a iniciativa provavelmente seria celebrada como um avanço, mas os tempos mudaram. Empresas como a Uber ameaçaram deixar de operar no Brasil. Os próprios beneficiários protestaram contra as medidas que chegaram a ser encaminhadas pelo governo ao Congresso. “Se dependesse de mim, eu enquadraria tudo em CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Mas os trabalhadores pediram que não fosse CLT, as plataformas também não querem CLT, o Supremo Tribunal Federal está falando que não cabe CLT. Eu vou brigar com os trabalhadores, com as empresas e com o Supremo pela minha convicção? Não”, lamentou o ministro do Trabalho, o petista Luiz Marinho, sobre a situação que, para ele, configurava uma clara distopia. A distopia, ao que tudo indica, está em outro lugar, conforme reportagem de
e , na revista Veja.As eleições municipais mostraram uma inclinação do eleitorado brasileiro pelos candidatos que se apresentaram como de centro e de direita e impuseram uma vexatória derrota aos tradicionais partidos de esquerda. Juntos, eles foram bem-sucedidos apenas em 10% das mais de 5 000 cidades do país. Desde então, especula-se as razões desse resultado pífio. Desnorteado, o PT está em busca de respostas. Na terça-feira 12, a Fundação Perseu Abramo, entidade ligada ao partido, deu sequência a um seminário que pretende ajustar a bússola da legenda. O tema do encontro, não por acaso, foi “O novo mundo do trabalho”. O motoboy Nicolas Souza Santos foi um dos palestrantes. Suplente de vereador, ele reclamou da falta de segurança e dos problemas da área de saúde. Nenhuma palavra sobre a tal regulamentação defendida pelo ministro.
O PT nasceu dentro do sindicalismo dos anos 80. Não existia internet, telefone celular nem transporte por aplicativo. Na época, a estratégia política do partido colocava em lados opostos os patrões “exploradores” e os empregados “explorados”. Hoje, há 30 milhões de trabalhadores autônomos e cerca de 8,4 milhões de micro e pequenas empresas, que empregam milhões de brasileiros. Nas eleições em São Paulo, o incentivo ao empreendedorismo esteve no centro da campanha do ex-coach Pablo Marçal, que, por pouco, não tirou o esquerdista Guilherme Boulos (Psol) do segundo turno. Atento a isso, o PT incluiu o tema em seu seminário de avaliação. Para o filósofo Vladimir Safatle, esse movimento é arriscado e vai de encontro à pregação esquerdista: “Empreendedorismo significa ausência de solidariedade. Todas as pessoas à sua volta são competidores, são concorrentes”. “Pode ser um suicídio ideológico”, completa Alberto Aggio, professor de ciências políticas da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
O fracasso eleitoral também plantou a semente da discórdia entre as legendas de esquerda, sobretudo em relação ao dilema entre a coerência e o oportunismo. O PT superou esse dilema há mais de vinte anos, ao moderar o discurso e aliar-se ao centro. As novas lideranças de esquerda, no entanto, têm trocado farpas em público. O prefeito de Recife, João Campos, emergiu das urnas como a mais nova estrela do PSB. Reeleito no primeiro turno, ele se destaca, entre outras coisas, pelo talento em compor com políticos de diferentes espectros ideológicos. Recentemente, durante uma entrevista, ele criticou o deputado Guilherme Boulos, a estrela do PSOL. “A prática precisa caber naquilo que você fala e aquilo que você fala precisa caber na sua prática. Eu não conheço de perto a trajetória de Boulos, mas acredito que ele teve uma roupagem diferente enquanto pré-candidato e candidato a prefeito”, disse, se referindo a momentos em que o psolista atenuou o discurso radical e abandonou temas que sempre defendeu publicamente, como a reversão de privatizações, a descriminalização das drogas e a defesa da ditadura de Nicolás Maduro, na Venezuela.
Boulos devolveu a provocação. “Não creio que ele está autorizado a me dar aulas de coerência, até porque, em 2020, quando ele se elegeu prefeito pela primeira vez, se elegeu com o mote ‘PT nunca mais’”, rebateu o deputado. “Hoje, que o Lula é presidente, ele virou o maior lulista do país. E mais do que isso: eu tenho lado. Tenho posições firmes, e ter posição firme tem um preço. Eu não vou conforme o vento”, completou. O parlamentar do Psol disputou a prefeitura de São Paulo com o apoio do presidente da República. Mesmo que não vencesse, esperava sair da eleição forte o suficiente para se habilitar ao posto de principal liderança de esquerda no pós-Lula. A derrota fragilizou o plano, mas o embate com o prefeito de Recife esconde o desejo de protagonismo no campo da esquerda — objetivo de ambos, diga-se. “João é de uma geração nova, que representa uma esquerda mais em sintonia com o espírito do tempo atual, mais moderna e mais focada na gestão e na entrega de serviços”, diz o socialista Ricardo Cappelli, ex-secretário-executivo do Ministério da Justiça e atual presidente da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial.
Filho do ex-governador Eduardo Campos, o prefeito foi reeleito com 78% dos votos. Sua campanha passou ao largo de temas ideológicos. “Minha tarefa foi buscar reunir aquilo que unisse as pessoas, e não dividisse. Não me parece correto ficar pregando o caminho do nós contra eles, ou do eles contra nós. Isso é muito ruim. Apesar de ter uma direita radical fazendo esse discurso, não sou obrigado a ir para onde os outros tentam me levar”, disse a VEJA. O PSB é o mais moderado dos partidos de esquerda, o que também obteve o melhor desempenho nas urnas em outubro passado, à frente do PT, enquanto o PSOL, o PCdoB e o minúsculo PV, que se aproximam mais da esquerda tradicional, elegeram seus candidatos em apenas 33 municípios (veja o quadro). “A esquerda está dividida porque não existe um fórum permanente de debate no campo progressista para alinhar as figuras que despontam e unificar as pautas. A ausência desse debate provoca essa briga de egos e alimenta esse narcisismo de pequenas diferenças”, avalia o deputado Chico Alencar, vice-líder do PSOL na Câmara.
Nos últimos dias, deputados do PT, PSB, PCdoB, PSOL, PDT e PV esqueceram as diferenças e se uniram em defesa de uma proposta de emenda constitucional redigida pela deputada Erika Hilton (PSOL-SP) que reduz o horário de trabalho a oito horas diárias e jornada semanal de quatro dias. Até o fechamento desta edição, o governo ainda não havia se manifestado oficialmente sobre a ideia. Os ministros do Trabalho, Luiz Marinho, e da Secretaria-Geral da Presidência, Márcio Macedo, foram evasivos quanto ao endosso ao texto, sugerindo que o assunto não estava em discussão no Planalto. O fato é que a perspectiva de trabalhar menos sem comprometer a renda certamente alimenta a lista de desejos de qualquer brasileiro. Os governistas sabem que as chances de aprovação de um projeto assim são irrisórias e não pretendem se comprometer umbilicalmente com ele. Preferem, por enquanto, apenas surfar a onda de mais uma abstração progressista que não sensibiliza tanto o eleitor como nos tempos de outrora.
Publicado em Veja de 15 de novembro de 2024, edição nº 2919