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Financiamento a eventos religiosos divide prefeituras e tribunais de contas

JUSTIÇA, NOTÍCIAS


Embora seja recorrente, o uso de recursos públicos pelas prefeituras em eventos de cunho religioso ainda divide os tribunais responsáveis por fiscalizar as gestões municipais e não conta hoje com regras unificadas para todo o país. Apenas neste ano, ao menos 36 licitações foram abertas em 13 estados voltadas para festividades religiosas e englobam de celebrações a santos católicos à contratação de bandas gospel. Especialistas defendem que os repasses ferem o princípio de laicidade do Estado. As informações são de Luísa Marzullo, do jornal O Globo.

Os Tribunais de Conta dos Estados (TCEs) e dos Municípios (TCMs) não têm entendimento uniforme sobre o tema — apenas as maiores cidades contam com TCMs, as demais ficam sob o guarda-chuva dos estaduais. O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal de Contas da União (TCU) também não definiram uma diretriz nacional. Em uma decisão do ministro Dias Toffoli, em 2019, a Corte liberou shows religiosos no Ano Novo de Copacabana, uma das festas mais importantes do país, mas não há uma súmula que oriente os estados.

Professor de Direito Constitucional da PUC-Rio, Thiago Varella avalia que há necessidade de critérios para determinar como as verbas devem ser utilizadas:

— Na decisão de 2019, o STF garantiu a necessidade de proteção da liberdade de expressão e das manifestações culturais naquele evento em específico. Há quem entenda que isso inclui shows religiosos e eventos como a Marcha Para Jesus, mas ainda há controvérsia sobre o assunto — a o pesquisador.

Entre os 13 estados com repasses em 2023 a eventos religiosos mapeados pelo GLOBO, em seis, não há manifestação dos tribunais sobre o tema. Em cinco, os repasses são considerados legais e, em dois, ilegais. Somado, o gasto das prefeituras com esses eventos chega a R$ 10,3 milhões. São mais comuns os investimentos em celebrações evangélicas (17) e católicas (15). Há na lista três licitações voltadas para ritos de religiões da tradição afro-brasileira.

No Rio, o Tribunal de Contas do Estado tem se posicionado pela ilegalidade dos repasses, o que nem sempre impede que eles ocorram. O primeiro entendimento ocorreu em 2013, ano em que o TCE condenou a prefeitura de Teresópolis por uma Marcha Para Jesus que ocorreu na cidade em 2010. Na ocasião, o ex-prefeito Jorge Mário foi multado por ter destinado R$ 119 mil à manifestação organizada por igrejas evangélicas.

Manifestações culturais

Apesar disso, no ano passado, o governador Cláudio Castro (PL) e o prefeito Eduardo Paes (PSD) contribuíram com R$ 1,245 milhão e R$ 500 mil, respectivamente, para o Louvorzão 93 FM, organizado pelo gravador gospel MK Music, que pertence à família do ex-senador bolsonarista Arolde de Oliveira, falecido na pandemia.

À época, a Secretaria Estadual de Cultura afirmou que o evento se enquadrava na categoria de manifestações culturais e que, por isso, fazia parte do calendário do estado. O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) participou da festividade e fez discurso com viés eleitoral sobre a “luta do bem contra o mal”.

Em Araruama, a Procuradoria-Geral do Município impediu a destinação de R$ 200 mil ao “Araruama Festival Gospel”, evento de cunho similar que ocorreu na sexta-feira no interior do estado. Com a proibição, a gestão municipal não foi autorizada a contratar três artistas para a festa.

Pernambuco é outro estado com proibição ao patrocínio. O GLOBO, porém, também localizou licitações voltadas a esses eventos em municípios pernambucanos. Em julho deste ano, a prefeitura de Garanhuns, cidade natal do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), gastou R$ 870.274 com quentinhas e lanches para dois eventos evangélicos, o Festival Gospel Garanhuns e o Festival Viva Jesus 2023. De acordo com a gestão, mais de 200 mil pessoas compareceram aos festejos no município de 140 mil habitantes.

Já os estados de Minas Gerais, Paraná, Pará, São Paulo e Espírito Santo possuem entendimento diferente. Nessas localidades, os tribunais se manifestaram pela validade do fomento a eventos religiosos, desde que tenham preeminência turística, ou seja, sejam festividades que atraiam público para a cidade e contribuam com a economia local.

Há dois meses, o Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCE-MG), ao ser consultado, entendeu que verbas municipais podem ser destinadas ao custeio da Marcha Para Jesus. De acordo com o tribunal, trata-se de um evento de “caráter sociocultural, folclórico, turístico, assistencial e até mesmo econômico” e, por isso, há interesse público em que ele seja realizado.

O artigo 19 da Constituição Federal estabelece que o poder público não pode “estabelecer cultos religiosos, assim como subvencioná-los, embarcar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança”. Na avaliação do professor de Direito Constitucional da Universidade Federal Rural do Rio (UFFRJ), Fernando Bentes, os repasses municipais para festas religiosas são usados com viés eleitoreiro:

— Parece haver uma tentativa dos políticos em agradar certas igrejas para angariar votos dos fiéis. Além da inconstitucionalidade, o patrocínio direto de um evento religioso confunde o público com o privado, viola a laicidade do Estado, a igualdade entre religiões e a própria essência republicana da Constituição.

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