Não há tempo a perder: o Brasil precisa agir agora para evitar uma crise de abuso de opioides como a que acontece nos Estados Unidos. Essa é a principal recomendação de um artigo assinado por dois pesquisadores no periódico especializado The Lancet Regional Health – Americas.
Segundo matéria de André Biernath, na BBC News, os opioides são uma classe de fármacos para tratar a dor que, se usados de forma inadequada, podem causar forte dependência.
Um dos remédios mais preocupantes desse grupo, segundo especialistas, é o fentanil, que virou um problema de saúde pública em terras americanas e é 100 vezes mais potente que a morfina.
Segundo o Instituto Nacional de Abuso de Drogas dos EUA, as mortes por overdose relacionadas ao uso de opioides saltaram de 21 mil em 2010 para 80,4 mil em 2021 — um aumento de quatro vezes em pouco mais de uma década.
Embora a situação brasileira seja bem diferente, os autores do texto recém-publicado chamam a atenção para dois fatores que podem sinalizar um aumento do uso de fentanil no país durante os próximos anos: a pandemia de covid-19 e o registro das primeiras apreensões da droga em operações realizadas pela polícia recentemente.
Os especialistas sugerem, portanto, que o Brasil aprenda com a experiência dos Estados Unidos — e crie políticas públicas agora, antes que o problema tome proporções maiores.
Duas realidades distintas
Antes de mais nada, é preciso deixar claro que os cenários de Brasil e EUA são completamente diferentes.
Em resumo, o problema entre os americanos começou com a promoção indevida de medicamentos opioides como um tratamento para dor há cerca de 20 anos — na bula e nas propagandas, algumas empresas diziam que fármacos analgésicos como a oxicodona eram seguros e não provocavam dependência.
Isso, por sua vez, levou a um aumento impressionante no número de indicações médicas desse tratamento. Segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA, em 2012 aconteceram 255,2 milhões de prescrições de opioides por lá — um recorde histórico.
Na prática, isso levou milhões de pessoas à dependência — que, com o maior controle da venda legal desses comprimidos nas farmácias em anos mais recentes, precisaram recorrer ao mercado ilegal e às opções mais potentes, como é o caso do fentanil criado em laboratórios clandestinos.
No Brasil, o cenário é diferente tanto no perfil quanto na dimensão. O psiquiatra e epidemiologista Francisco Inácio Bastos, autor principal do artigo publicado no The Lancet, explica que os médicos generalistas do país ainda têm uma “conduta tradicionalmente cautelosa no uso dos opioides mais potentes”.
“Mas há um segundo grupo de especialistas, como os anestesistas, os intensivistas, os ortopedistas e os profissionais que lidam com dor, que costumam prescrever e utilizar mais”, diferencia.
Bastos também é um dos autores de um grande levantamento sobre o uso de drogas no Brasil. Os dados, colhidos em 2015, revelam que 2,9% dos brasileiros já usaram opioides ao menos uma vez na vida sem indicação médica — e 1,4% deles experimentaram essas substâncias no último ano.
“Esse índice corresponde, mais ou menos, ao que era visto nos Estados Unidos há dez ou 15 anos”, estima o especialista.
Ao contrário do observado entre os americanos, onde os homens são maioria entre os usuários, por aqui o consumo desses fármacos é mais comum entre as mulheres.
Divisores de água
Bastos chama a atenção para dois fatores recentes que podem contribuir para a maior disseminação dos opioides em território brasileiro.
O primeiro deles é a covid-19.
“A resposta do país foi confusa e politizada. Com isso, tivemos uma pandemia muito intensa, com números de casos, hospitalizações e mortes superior ao observado em outros lugares”, compara o médico, que é pesquisador titular da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz).
Nesse contexto, o fentanil ganhou relevância, porque ele é usado para intubar e colocar em ventilação mecânica os pacientes com quadros de extrema gravidade.
Que fique claro: o uso desse opioide em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) não tem nada de errado. Ele é de fato indicado em indivíduos em condições mais críticas, que necessitam de aparelhos para respirar.
Só que, numa pandemia que afetou milhões de pessoas num curto espaço de tempo, a demanda por essa substância provavelmente foi às alturas.
Bastos esclarece que os dados nacionais sobre o uso de fentanil durante a pandemia ainda não são 100% conhecidos — e variaram consideravelmente entre hospitais públicos e privados. Mas, segundo ele, é inegável que eles subiram consideravelmente nesse período.
Até mesmo antes disso, um crescimento já estava em andamento: a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) registrou um aumento de 500% nas vendas de opioides no país entre 2009 e 2015 (número mais recente disponível).
O segundo fator que pode engatilhar uma crise dessas no Brasil é o mercado ilegal.
O psiquiatra diz que recebeu “com surpresa” a notícia da primeira apreensão de fentanil no país — em março, a Polícia Civil do Espírito Santo interceptou 31 frascos da droga com traficantes.
Ainda nos primeiros meses de 2023, o Centro de Informação e Assistência Toxicológica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) soltou um alerta sobre casos de intoxicação com fentanil identificados no interior paulista.
“Eu acompanho as estatísticas da dispensação hospitalar de opioides, então não esperava esses primeiros indícios dessa substância no mercado ilegal”, admite.
“Até porque o Brasil não tem um comércio de heroína forte, como nos EUA e na Europa, que está ligado aos demais opioides”, complementa.
O que fazer?
No artigo recém-publicado, os autores ponderam que a situação do consumo de opioides no Brasil não é motivo para pânico — mas a experiência americana e os indícios recentes devem ser encarados como um alerta.
Uma das preocupações do especialistas é a “imprevisibilidade do mercado ilegal” e “a possibilidade de vendas de produtos que misturam cocaína e fentanil” no país.
Ainda segundo eles, a boa notícia é que o problema está no início, num estágio até 15 anos anterior ao observado nos EUA. Então, ainda é possível freá-lo antes que se torne uma preocupação de saúde pública.
Para a epidemiologista Noa Krawczyk, a segunda autora do texto do The Lancet, um passo fundamental é “estabelecer limites sobre o marketing da indústria farmacêutica para médicos e pacientes”.
“É preciso criar diretrizes claras e limitar o uso de analgésicos opioides só para os casos em que eles são absolutamente necessários. Quando possível, outros tratamentos para dor devem ser priorizados”, sugere a especialista, que é professora do Centro de Epidemiologia e Políticas sobre os Opioides da Universidade de Nova York, nos EUA.
Nesse sentido, Bastos elogia uma decisão da Anvisa, que proibiu a comercialização de produtos químicos usados na fabricação ilegal do fentanil.
O pesquisador da FioCruz também aponta a necessidade de criar redes de vigilância toxicológica, que sejam capazes de detectar a presença desse e de outros opioides em drogas apreendidas pela polícia.
Controlar a oferta e educar a demanda
O psiquiatra argumenta, porém, que não adianta apenas reprimir o tráfico sem orientar os usuários e os dependentes.
“Historicamente, quando você comprime a oferta e não reduz a demanda, a situação só piora”, adverte.
“Durante a Lei Seca dos Estados Unidos [que proibia a venda de bebidas alcoólicas], as pessoas deixaram de consumir os fermentados, como a cerveja, para tomar destilados de baixíssima qualidade”, exemplifica.
“Ou seja, quando há uma repressão muito forte, a tendência é buscar produtos mais concentrados, potentes e portáteis”, conclui o médico.
O mesmo aconteceu com o ópio e heroína, a cocaína e o crack, a maconha e as drogas K, a oxicodona e o fentanil…
“E você só reduz a demanda com educação, aconselhamento e serviços de saúde”, pontua Bastos.
“O Brasil também já pode estabelecer protocolos para o tratamento de dependência aos opioides, com o uso de medicações específicas”, concorda Krawczyk.
Por fim, Bastos acredita que é necessário treinar todos os profissionais de saúde do país para que eles sejam capazes de detectar um quadro de overdose por opioides — e saibam o que fazer para salvar a vida de vítimas.
“O Brasil está muito mal nesse quesito. Eu mesmo não tive uma única aula sobre como lidar com quadros de abuso de drogas ilícitas durante a minha formação inicial”, diz ele.
“É importante que médicos e enfermeiros passem por um treinamento e saibam o que fazer numa situação dessas”, defende.
Há, por exemplo, um remédio que é usado em casos de overdose e pode salvar a vida daquele indivíduo.
Para o psiquiatra, essas ações são necessárias mesmo que a crise dos opioides não vire algo tão grande no Brasil.
“Tomara que a dependência relacionada ao fentanil em nosso país não ganhe a mesma dimensão catastrófica do que ocorreu nos Estados Unidos”, torce Bastos.
“Mas não importa se estamos falando de cinco ou de milhares de usuários. Nossa função enquanto profissionais de saúde é cuidar e salvar vidas”, conclui ele.