Congressistas podem destinar recursos da União por meio de emendas ao Orçamento, que ultrapassaram R$ 50 bilhões na peça deste ano. O montante caiu para R$ 44,6 bilhões após o veto de Lula, que desagradou parlamentares. Desse total, R$ 25 bilhões serão aplicados de acordo com emendas individuais de deputados e senadores.
Há outros dois tipos de emendas parlamentares. As de bancadas dos estados, que definiram outros R$ 11,3 bilhões, e as de comissões parlamentares da Câmara, do Senado e mistas, que indicaram o destino de R$ 11 bilhões.
Um detalhe complica mais: o governo é obrigado a executar as emendas individuais e de bancada (desde que mudanças constitucionais foram aprovadas no Congresso em 2015 e 2019), reduzindo ainda mais a margem de manobra para equilibrar receitas e despesas. Para 2024, o Congresso criou até um calendário de pagamentos dessas emendas obrigatórias, também vetado por Lula.
Hélio Tollini, especialista em contas públicas que por 30 anos atuou na consultoria de Orçamento da Câmara, na Secretaria de Orçamento do governo e em organismos internacionais, alerta que as emendas estão tomando um espaço desproporcional nos gastos federais, cristalizando uma peculiaridade negativa do Brasil:
— Não é assim no mundo inteiro. O processo brasileiro com emendas parlamentares é fora da curva, não encontra paralelo no mundo. É insustentável — diz Tollini. — Nos países da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, grupo que reúne economias mais avançadas), não se vê emenda individual, ela é uma excrescência por si só. É um único parlamentar dizendo onde vai ser gasto parte do dinheiro público. As iniciativas deveriam ser sempre coletivas.
Um estudo de 2022 do economista Marcos Mendes demonstrou como o Brasil destoa dos países da OCDE. De 29 nações analisadas, somente EUA, Eslováquia e Estônia aparecem acima da marca de 2% de recursos livres definidos por congressistas. Naquele ano, o percentual brasileiro foi ainda maior: 24,6%.
E, enquanto em outros países a dinâmica das relações entre Executivo e Congresso pouco se alterou nos últimos anos, no Brasil a fatia apropriada por emendas deu um salto a partir de 2020.
Ineficiência na alocação
O estudo de Mendes ressalta ainda o elevado número de emendas no processo orçamentário brasileiro, o alto valor envolvido e o fato de a proposta do Orçamento já sair do Executivo com uma reserva para os parlamentares. Dessa forma, deputados e senadores não têm o ônus de cortar outros gastos para alocar recursos escolhidos por eles. O problema é que eles estão ampliando cada vez mais essa fatia.
— No fim das contas, a sociedade acaba pagando o preço. Esse conflito gera uma ineficiente alocação de recursos — diz Juliana Inhasz, professora de economia do Insper.
Sem condições de barrar a voracidade do Legislativo, o governo tenta canalizar parte dos recursos das emendas para obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). A infraestrutura é uma das poucas áreas em que se aproximam as prioridades do governo e as dos parlamentares, interessados em apadrinhar obras em ano eleitoral.
Tollini chama atenção ainda para o crescimento das chamadas “emendas Pix”, modalidade criada em 2019 na qual o parlamentar destina recursos diretamente para prefeituras, sem necessidade de definir projetos. Essas emendas chegam a R$ 8,2 bilhões em 2024, maior valor desde a criação.
— A “emenda Pix” é a negação da transparência. Manda o dinheiro para o estado ou o município e não diz para o que vai ser feito, não diz nada — diz ele, lembrando que isso também dificulta auditorias sobre como o dinheiro foi usado.
Para o especialista em contas públicas Raul Velloso, o Orçamento muito engessado dificulta cumprir a meta de zerar o déficit público neste ano, definida pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
— Esses artifícios para engordar emendas só terão solução quando conseguirmos atacar o problema de excesso de gastos previdenciários — diz Velloso, referindo-se à maior despesa fixa da União.
Estudioso da Previdência e das contas públicas, o economista Fabio Giambiagi pondera que é compreensível o surgimento das emendas impositivas diante da insatisfação dos parlamentares com os contingenciamentos na diminuta parcela de gastos discricionários (livres), mas concorda que elas chegaram a níveis nunca vistos internacionalmente:
— Antes os ministros eram senhores de tudo, e os parlamentares eram pedintes. Mas isso foi mudando, e o sentido da despesa discricionária se alterou radicalmente. Enchemos o país de praças, e não há mais recursos para políticas onde a integração é essencial, como prevenção de desastres, saúde, educação e até construção de estradas.
‘Governo congressual’
O cientista político Claudio Couto diz que o que chama de “governo congressual” ganhou espaço e conseguiu alterar o sistema político durante dois governos de presidentes enfraquecidos na relação com o Legislativo: Dilma Rousseff (PT) e Jair Bolsonaro (PL). De volta ao Planalto, Lula encontrou um novo cenário.
— Aquele presidencialismo de coalizão, como conhecemos, não existe mais. O grupo de parlamentares do Centrão deixa de ser de adesão, para se tornar parcialmente de adesão. Prefiro chamar de governo congressual, em que você tem o Congresso liderando o processo decisório. Lula tenta retomar o controle, mas ainda permanece uma disputa entre Legislativo e Executivo — diz o cientista político.
Procurados, o governo e os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), não se manifestaram.