No meio da crise de refugiados da Síria, que afetou boa parte da Europa na década passada, o bioquímico alemão Johannes Krause decidiu que estava na hora de recontar o passado profundo do continente com base nas descobertas da genômica, em especial o que se sabe sobre o DNA de pessoas que viveram há milhares de anos.
O resultado é o livro “A Jornada dos Nossos Genes”, que ele escreveu em parceria com o jornalista de ciência Thomas Trappe. A obra traz duas mensagens claras para os que enxergam algo de apocalíptico nos fluxos migratórios de países pobres para a Europa.
Primeiro, ela mostra que longe de serem “racialmente puros”, os europeus atuais derivam de uma série de miscigenações de grupos muito diferentes entre si. O livro também aponta como comparados com esses eventos do passado, os imigrantes atuais não passam de uma gota no oceano.
“Nós queríamos mostrar que, para começo de conversa, a mobilidade é parte da história humana. Em segundo lugar, a chegada de 1 milhão de sírios na Alemanha é algo muito pequeno quando comparado ao que aconteceu no passado, e nós sempre lidamos com fenômenos desse tipo”, disse Krause à Folha em conversa por videoconferência.
“E é algo que vale para períodos históricos muito recentes também. Veja o que aconteceu na Alemanha depois da Segunda Guerra Mundial –o país recebeu 15 milhões de trabalhadores da Turquia, da Grécia, da Itália e de outros lugares. Muitas dessas pessoas foram integradas e, na verdade, isso ajudou nossa economia.”
O avanço das técnicas de sequenciamento (grosso modo, “soletramento”) do DNA e da capacidade de recuperar material genético de esqueletos antigos de forma confiável tem ajudado Krause e seus colegas do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva a traçar uma cronologia detalhada das idas e vindas populacionais da Europa a partir de uns 50 mil anos atrás, quando os primeiros membros da nossa espécie começaram a chegar ao continente.
Em plena Era do Gelo, as enormes flutuações climáticas e os rigores do frio fizeram com que boa parte dos colonizadores originais da Europa perecessem, enquanto outras ondas de Homo sapiens iam chegando ao continente e também sofriam com o clima. Mas alguns poucos desses pioneiros sobreviveram, formando o primeiro grande componente ancestral do genoma dos europeus, o dos caçadores-coletores da Idade da Pedra.
Curiosamente, embora esse grupo contivesse muitas pessoas com olhos claros, sua pele era escura, indica o DNA, mostrando que as categorias raciais de hoje não servem para descrever povos do passado. “Temos evidências de que apenas no extremo nordeste da Europa atual já havia caçadores-coletores com pele clara por volta de 10 mil anos atrás”, conta Krause.
Ocorre que os tons mais claros de pele normalmente evoluem em populações nativas de áreas com luz solar relativamente mais fraca ao longo do ano, distantes do Equador. Nessas circunstâncias, a seleção natural pode favorecer a pele alva porque ela facilita a ação da luz solar na produção de vitamina D no organismo, algo essencial para a saúde e o desenvolvimento.
No entanto, ao que parece, isso só é necessário se as pessoas não têm acesso a fontes de vitamina D na dieta, como peixes gordurosos (salmão) e fígado. Os caçadores-coletores europeus eram capazes de obter alimentos desse tipo com abundância suficiente, o que explica por que passaram muitos milhares de anos sem perder o tom escuro da pele.
Ironicamente, os europeus só começaram a se tornar “brancos” com a chegada de imigrantes da atual Turquia, a partir de cerca de 8.000 anos atrás. Eram povos que já tinham se tornado dependentes da agricultura, a qual oferecia uma dieta mais restrita, baseada em cereais como a cevada e o trigo e com menos vitamina D, daí a mudança.
Embora sua alimentação fosse de pior qualidade, em média, os recém-chegados do Oriente próximo conseguiam sustentar uma população muito maior graças à produtividade de suas lavouras. Isso fez com que eles lentamente substituíssem boa parte dos grupos de caçadores-coletores ao longo dos milênios seguintes, miscigenando-se com os que restaram.
Em alguns lugares do atual Mediterrâneo, como a ilha da Sardenha, na costa italiana, todos os habitantes ainda são basicamente descendentes dos agricultores anatólios.
A última grande virada de mesa no genoma dos europeus aconteceu a partir de uns 5.000 anos atrás, com a chegada de grupos pastoris altamente móveis que viviam, inicialmente, nas estepes do mar Negro, na fronteira entre as atuais Ucrânia e Rússia.
Com tecnologias como a roda, o uso do bronze para fabricar armas e a domesticação dos cavalos, os imigrantes das estepes desencadearam um processo semelhante de substituição e miscigenação.
É muito provável que eles fossem os falantes originais do idioma conhecido como protoindo-europeu, ancestral de quase todas as línguas atuais da Europa, do português e do inglês, no oeste, ao russo e ao lituano, no leste.
Esses mesmos grupos também invadiram os atuais Irã e Índia, dando origem a muitos dos idiomas desses países.
“Tanto a agricultura dos anatólios quanto as novas tecnologias das estepes foram mudanças enormes na economia e na sociedade. Além disso, a densidade populacional era relativamente pequena, então faz sentido que eles transformassem profundamente a população que existia no continente. Depois da Idade do Bronze, ficou bem mais difícil que isso acontecesse. As migrações continuaram acontecendo, mas o impacto era proporcionalmente muito menor”, explica Krause.
O pesquisador colabora com uma equipe brasileira liderada por André Strauss, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, e deve visitar o Brasil em novembro. A parceria já permitiu a análise de DNA de alguns dos mais antigos habitantes do país, a população de Lagoa Santa (MG), com cerca de 10 mil anos de idade. “Também estamos interessados em trabalhar com populações mais recentes da Amazônia”, conta ele.
“A Jornada dos Nossos Genes”
Autores: Johannes Krause e Thomas Trappe
Tradução: Maurício Mendes da Costa e Vanessa Rabel
Editora: Sextante
Quanto: R$ 54,90 (impresso); R$ 39,99 (ebook); 288 págs.