Mais de 50% de tudo o que foi designado para o orçamento pelos ministérios do Esporte e do Turismo em 2024 vieram de emendas parlamentares. Na prática, isso significa que essas pastas foram as que mais perderam a autonomia sobre seus próprios recursos e passaram a depender de deputados e senadores para executarem suas políticas.
A maior parte da verba que essas pastas tiveram para gastar no ano passado partiu de indicações políticas. Para especialistas, esse modelo pode comprometer a qualidade dos gastos públicos, já que os critérios técnicos tendem a ficar em segundo plano.
O levantamento feito pelo g1 utilizou os valores de emendas parlamentares, de todos os tipos, empenhadas – ou seja, aquelas já reservadas para uso em determinadas ações – e comparou com todos os valores empenhados do Orçamento da União para os ministérios, entre os anos de 2020 e 2024.
No ano passado, o orçamento do Ministério do Esporte ficou em R$ 1.8 bilhão enquanto as emendas enviadas foi de R$ 1,3 bilhão, o que mostra uma relação de dependência de 72,57% das emendas indicadas pelos parlamentares. Ou seja, para cada R$ 4 que o ministério tinha para gastar, R$ 3 vieram de emendas.
A pasta ainda teve um aumento de quase 22 pontos percentuais entre 2023 e 2024 na relação de dependência do seu orçamento perante as emendas parlamentares.
“”Os ministérios estão muito dependentes das emendas e quando a gente vê o que é alocado para os ministérios eles têm que bancar toda a parte de infraestrutura pessoal e sobra muito pouco para atividade, porque ele executa política pública, para atividade finalística”, afirmou a deputada federal Adriana Ventura (Novo-SP).
Já a relação do Ministério do Turismo em 2024 foi um pouco menor. A pasta empenhou R$ 1,3 bilhão, sendo 65,93% (R$ 850 milhões) proveniente de emendas parlamentares.
Especialistas apontam falhas do modelo
Essas variações mostram o quanto o orçamento da União deixou de ser pensado pelo governo e começou a ser, como no caso dessas duas pastas, comandado pelo Congresso Nacional ao longo dos últimos anos.
“Essa mudança que aconteceu de quatro, cinco anos pra cá ela tem uma uma questão muito séria, que é entender quem vai ser o agente fiscalizador. Porque quando o orçamento está na mão do Executivo, é função do Legislativo aprovar [fiscalizar]. E quando o próprio Legislativo fica responsável por uma fatia tão grossa do orçamento, não tem agente designado para essa fiscalização”, apontou a doutora em Ciência Política e professora da FGV Brasília, Graziella Testa.
Além da parte da fiscalização, o cientista político e professor do Insper, Leandro Cosentino, aponta também que a forma como as emendas estão estruturadas hoje é confortável para os parlamentares que as indicam, porque eles não têm “responsabilidade” sobre o uso do dinheiro que eles estão orçando.
“Estamos num presidencialismo, mas tratar esse presidencialismo como se fosse parlamentarismo, é o problema. Porque o Parlamento, tem a disposição a esses recursos, mas ele não tem o ônus, a responsabilidade de governar de fato, de atender uma agenda pré-estabelecida”, ponderou.
E, com isso, é comum ministros visitarem o Congresso para pedir que os parlamentares enviem emendas para suas pastas, uma forma de engordar o Orçamento do órgão. Mas dentro do próprio parlamento essa atitude não é vista com maus olhos e acaba sendo criticada por poucos parlamentares.
“Um ministro de Estado ficar percorrendo gabinetes de deputados e senadores com pires na mão para ver projetos do seu ministério sendo executados é uma inversão de valores evidentes”, criticou o deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ).
“Agora parece que o orçamento é que emenda as emendas [parlamentares] e não as emendas que emendam o orçamento”, brincou Consentino.
Graziella Testa ainda aponta que essa metodologia de construção de orçamento é “antidemocrática” e fere “os princípios que regem a Constituição de 1988”.
“O que a gente tem praticamente hoje é um parlamentarismo branco, onde o legislativo tem um poder de agenda muito grande, controla boa parte do processo orçamentário e agora o executivo perde essa moeda de troca e perde a capacidade de conseguir aglutinar apoios para implementar sua agenda”, completou Consentino.
Enquanto alguns ministérios tiveram variações crescentes na participação das emendas no orçamento nos últimos anos, como o do Esporte, Agricultura, Saúde e Cultura, outros tiveram redução drástica no percentual de dependência.
É o caso do Ministério do Desenvolvimento Regional, responsável pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). A empresa do governo federal doa máquinas e veículos para municípios por meio de emendas parlamentares.
Em 2020, o Congresso criou o famigerado “Orçamento Secreto”, onde o relator do orçamento ficava responsável pelo apadrinhamento das emendas, sem que o verdadeiro autor fosse identificado. Isso propiciou que a companhia passasse a receber muito em emendas, justificando um alto valor de dependência do orçamento à época.
Mas a situação mudou após investigações apontarem que a empresa estava utilizando recursos públicos a partir de emendas parlamentares de forma indevida. O que acabou inibindo os deputados e senadores a enviar mais recursos para a companhia.
Tipos de emendas
As emendas parlamentares são divididas em três naturezas de despesa: investimento, despesa corrente e inversões financeiras.
A primeira, como o próprio nome diz, é voltada para a aquisição de bens ou construção de estruturas. A segunda, para custeio de atividades do dia-a-dia dos órgãos e a terceira é usada para transferências.
Historicamente, a dedicação de emendas para despesas correntes sempre foi menor do que os gastos com investimentos, porque havia um entendimento de que o Congresso tinha a função de ajudar na formulação do orçamento apontando as necessidades regionais.
“Sempre cabe a gente lembrar que a ideia inicial das emendas parlamentares é você convidar o parlamento a trazer as especificidades regionais na formulação do orçamento público e execução é função do Poder Executivo”, afirmou Testa.
Entretanto, essa lógica foi mudando aos poucos até que em 2022 foram empenhadas mais emendas para custeio de atividades do que para investimentos.
Destinação de emendas por natureza
E essa mudança no comportamento escancara a relação de dependência que o orçamento da União passou a ter das emendas parlamentares nos últimos anos.
“A gente tem aí um processo de inversão profunda, eu acho que é uma discussão no sentido de pensar quem controla o processo orçamentário”, questionou Consentino.
O especialista ainda lembrou que uma das ideias sobre as emendas parlamentares era também ser usada como moeda de troca pelo Executivo para conseguir apoio para aprovação das agendas propostas pelo governo durante as eleições.
“Há não pouco tempo atrás, o Executivo controlava esse processo orçamentário e isso era uma moeda de troca importante do ponto de vista do presidencialismo de coalizão. Onde o Executivo tinha essa moeda para trocar por apoio dos parlamentares para os seus projetos”, afirmou.
Em 2024, o valor de emendas destinadas para despesas correntes foi de R$ 27,6 bilhões contra R$ 17,2 bi para investimentos.
Ou seja, sem essas emendas para pagamento de despesas, os ministérios poderiam ter dificuldade para operar ao longo do ano corrente.
“O executivo precisa que o legislativo autorize para que ele toque o básico da política pública do dia a dia, da estrutura não faz sentido. É um tipo de barreira que não gera contrapeso e que gera paralisia decisória. Então é muito negativo para gestão e não tem nenhuma explicação do ponto de vista político-democrático”, explicou Graziella Testa.
Percentual de dependência do orçamento dos ministérios com as emendas parlamentares
NOME DO ÓRGÃO | 2020 | 2021 | 2022 | 2023 | 2024 |
Ministério do Esporte | 0,00% | 0,00% | 0,00% | 50,90% | 72,57% |
Ministério do Turismo | 46,51% | 13,63% | 10,64% | 72,08% | 65,93% |
Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos | 0,00% | 0,00% | 0,00% | 45,05% | 46,85% |
Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional | 53,23% | 45,95% | 14,06% | 26,49% | 17,45% |
Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania | 44,21% | 36,98% | 26,81% | 16,64% | 16,67% |
Ministério da Igualdade Racial | 0,00% | 0,00% | 0,00% | 28,50% | 16,08% |
Ministério da Agricultura e Pecuária | 12,87% | 11,15% | 2,69% | 4,48% | 13,92% |
Ministério da Cultura | 0,00% | 0,00% | 0,00% | 7,15% | 11,04% |
Ministério do Empreendedorismo, da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte | 0,00% | 0,00% | 0,00% | 0,00% | 10,75% |
Ministério da Saúde | 7,29% | 8,18% | 8,98% | 7,59% | 10,69% |
Distribuição de emendas para ministérios e por natureza (em milhões de R$)
MINISTÉRIOS | Despesas Correntes | Investimentos | Total Geral |
Ministério da Saúde | R$22.743,30 | R$2.049,14 | R$24.792,44 |
Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome | R$768,68 | R$147,41 | R$916,09 |
Ministério do Esporte | R$768,10 | R$530,38 | R$1.298,47 |
Ministério da Educação | R$575,36 | R$967,20 | R$1.542,56 |
Ministério da Cultura | R$260,91 | R$20,94 | R$281,85 |
Ministério da Agricultura e Pecuária | R$194,82 | R$1.377,21 | R$1.572,03 |
Ministério do Trabalho e Emprego | R$147,83 | R$9,95 | R$157,79 |
Ministério das Cidades | R$129,90 | R$872,09 | R$1.002,00 |
Ministério das Mulheres | R$121,21 | R$23,40 | R$144,61 |
Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar | R$112,01 | R$120,32 | R$232,33 |
Ministério da Justiça e Segurança Pública | R$101,76 | R$732,40 | R$834,15 |
Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação | R$69,81 | R$18,75 | R$88,56 |
Ministério das Comunicações | R$68,15 | R$18,53 | R$86,67 |
Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania | R$67,43 | R$11,70 | R$79,12 |
Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima | R$55,93 | R$7,79 | R$63,73 |
Ministério da Defesa | R$54,10 | R$761,23 | R$815,33 |
Ministério do Turismo | R$45,42 | R$805,01 | R$850,43 |
Ministério da Igualdade Racial | R$24,31 | R$1,30 | R$25,61 |
Presidência da República | R$21,76 | R$6,37 | R$28,13 |
Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional | R$19,00 | R$2.073,48 | R$2.092,48 |
Despesas correntes
Na situação do comprometimento direto das despesas correntes, as mesmas relações de dependências permanecem.
Origem dos recursos das despesas correntes (em milhões de R$)
MINISTÉRIOS | Emendas | Orçamento da União | % Part. |
Ministério do Esporte | R$ 768,10 | R$ 1.080,33 | 71,10% |
Ministério das Mulheres | R$ 121,21 | R$ 233,10 | 52,00% |
Ministério da Cultura | R$ 260,91 | R$ 1.010,00 | 25,83% |
Ministério da Igualdade Racial | R$ 24,31 | R$ 131,24 | 18,52% |
Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania | R$ 67,43 | R$ 406,70 | 16,58% |
Ministério do Turismo | R$ 45,42 | R$ 330,54 | 13,74% |
Ministério do Empreendedorismo, da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte | R$ 10,76 | R$ 84,95 | 12,67% |
Ministério da Saúde | R$ 22.743,30 | R$ 201.937,00 | 11,26% |
Ministério da Agricultura e Pecuária | R$ 194,82 | R$ 2.248,29 | 8,67% |
Ministério das Comunicações | R$ 68,15 | R$ 799,33 | 8,53% |
Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar | R$ 112,01 | R$ 1.850,23 | 6,05% |
Ministério das Cidades | R$ 129,90 | R$ 3.089,83 | 4,20% |
Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima | R$ 55,93 | R$ 1.573,32 | 3,55% |
Ministério da Justiça e Segurança Pública | R$ 101,76 | R$ 4.800,33 | 2,12% |
Ministério dos Povos Indígenas | R$ 10,40 | R$ 837,96 | 1,24% |
Fonte: Ministério do Planejamento e Orçamento
O primeiro ministério no ranking dos que receberam mais emendas para despesas correntes do que para investimento é a Saúde, com R$ 22,7 bilhões. O valor corresponde a 11% de tudo que foi empenhado pelo próprio Ministério utilizando o Orçamento da União e é 11 vezes maior que as emendas empenhadas para investimentos.
A quantia destinada em 2024 para a pasta foi tão relevante, que durante a discussão entre Judiciário e Legislativo sobre as emendas de comissão bloqueadas, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Flávio Dino, abriu uma exceção na suspensão e autorizou que o Executivo pagasse as emendas necessárias para cumprir o piso constitucional dos gastos mínimos em saúde.
Já o Ministério da Igualdade Racial foi o que mais recebeu emendas para despesas correntes em comparação aos investimentos. Em 2024, a ministra Anielle Franco recebeu R$ 24,2 milhões em emendas para tocar a rotina da pasta, contra apenas R$ 1,3 milhões para investimentos. Ou seja, o valor para funcionamento operacional da pasta foi 18,7 vezes maior.
A Cultura também é outro Ministério que recebeu 12 vezes mais emendas parlamentares para utilização em despesas correntes do que investimentos. Ao todo, foram empenhados R$ 261 milhões contra apenas R$ 21 milhões para aquisição de bens.
“Essa semana, um parlamentar disse que não importa quantos ministérios o governo dê, ele não está atraído por estar apoiando esse governo. […] Isso ocorre justamente porque as emendas são mais atrativas”, lembrou Consentino.
De acordo com os dados do Planejamento, no ano passado, 71% do orçamento do Ministério do Esporte para pagamento de despesas correntes surgiu por conta de emendas parlamentares. No caso do Ministério das Mulheres, o valor foi de 52%.
“Cada vez mais os ministérios também se veem reféns de parlamentares, que também não têm responsabilidade sobre a execução”, criticou a deputada Ventura.
Outros seis ministérios tiveram mais de 10% das despesas correntes dependente diretamente das emendas parlamentares. Entre eles estão: Cultura (25,83%), Igualdade Racial (18,52%), Direitos Humanos e da Cidadania (16,58%), Turismo (13,74%), Microempresa (12,67%) e Saúde (11,26%).
“Do ponto de vista da gestão, me parece absurdo a gente pensar em um Ministério custear suas despesas correntes com emenda parlamentar”, disse a especialista.
A Educação, apesar de ter sido o segundo ministério que mais recebeu emendas para despesas correntes, em 2024, R$ 575.359.255,98. teve uma dependência de apenas 0,67%, já que o orçamento da União empenhado foi de R$ 86 bilhões.