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segunda-feira 22 de agosto de 2022 às 06:33h

Entorno do São Francisco tem rodízio de água e briga por legado da transposição

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Enquanto a filha trabalha, durante a semana, a dona de casa Irene Leandro, 59, cuida dos três netos. Na casa em que vive, uma caixa d’água garante água para cozinhar e para o banho das crianças.

Não fosse o reservatório no telhado, a torneira estaria seca. No bairro Alto de Rio Branco, em Sertânia, no sertão de Pernambuco, a água é bombeada para as residências só aos finais de semana —um cenário comum no município de 36 mil habitantes às margens do eixo leste da transposição do rio São Francisco.

Conforme José Matheus Santos, da Folha, a obra símbolo das gestões do PT no Nordeste, o desvio do Velho Chico, como o rio é popularmente conhecido, virou um ponto de disputa entre Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL).

De um lado, o candidato petista à Presidência argumenta que o projeto foi concebido e saiu do papel em 2005, em seu primeiro mandato, e estava com 90% da execução concluída em janeiro de 2019, quando o atual presidente tomou posse.

Bolsonaro, por sua vez, diz que a transposição ganhou impulso e teve etapas importantes finalizadas em sua gestão e costuma citar as suspeitas de corrupção relacionadas à obra, cujo orçamento, inicialmente de R$ 4,5 bilhões, consumiu R$ 16 bilhões ao longo de 14 anos.

Com dois grandes eixos, o canal da transposição tem quase 700 km de extensão e estruturas complexas como aquedutos e estações de bombeamento. A estimativa é a de que o projeto atenda 12 milhões de pessoas em 390 municípios nos estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte.

As promessas de segurança hídrica, contudo, contrastam com a rotina de rodízio para a população do entorno dos canais. Ainda assim, a chegada da água nas torneiras em dois dos sete dias da semana é celebrada pelos moradores.

“Antes da transposição era muito ruim. O pouco dinheiro que tínhamos era para comprar água”, afirma Irene, nascida e criada em Sertânia.

Edvaldo Barbosa, 50, dono de uma loja de materiais de construção na cidade, corrobora essa visão. “[O fornecimento] ainda não é o ideal, mas agora o dinheiro está mais livre, o que ajuda até o comércio.”

O eixo leste da transposição sai de Floresta (PE), cruza Sertânia e segue até a vizinha Monteiro, na Paraíba, em um trecho de mais de 200 km inaugurado em 2017, no governo de Michel Temer (MDB).

Desde então, a obra é alvo de disputas políticas. Semanas após Temer inaugurá-la oficialmente, os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff (PT) foram a Monteiro fazer um evento extraoficial com apoiadores.

O embate segue. Bolsonaro realizou atos de inauguração de trechos do eixo norte e de estações de bombeamento, em cerimônias com aliados tocando sanfona e fotos em meio aos canais, com os dedos indicadores apontando para o céu.

Nos discursos, celebrou o fato de inaugurar obras atrasadas que começaram em governos anteriores, argumento que encontra eco em parte do eleitorado da região.

É o caso de Gilmar Souza, 48, morador de Sertânia, para quem Bolsonaro é o responsável pela transposição —mesmo que o eixo leste tenha sido concluído sob Temer.

“O PT fez com uma mão e tirou com a outra. A maioria aqui, infelizmente, vota em Lula, mas quem terminou a transposição não foi o PT. Bolsonaro é quem está finalizando as obras, que pararam devido à corrupção”, afirma o comerciante.

Os apoiadores do atual presidente são minoria na cidade, mas ele diz acreditar que os votos no candidato à reeleição vão crescer ali na comparação com 2018. Há quatro anos, no segundo turno, Fernando Haddad (PT) obteve 86,7% dos votos no município, enquanto Bolsonaro, à época no PSL, recebeu 13,3%.

Na segunda quinzena de julho, a Folha encontrou poucas referências à campanha nas ruas de Sertânia. Uma casa tinha um adesivo de Lula na fachada e um carro circulava com o nome do ex-presidente pintado nas portas. Na mesma avenida, um veículo ostentava um adesivo de Bolsonaro no vidro traseiro.

Pouco presente nas ruas do município até o momento, o embate pelos votos do semiárido nordestino é intenso nos discursos de Lula e Bolsonaro. No início do mês, na Paraíba, o petista disse que o presidente age com desfaçatez. “Eles, que nunca mexeram um palito, resolveram dizer que fizeram a transposição. Essa gente tem tanta desfaçatez que é obrigada a mentir até por coisas que eles sabem que o povo sabe.”

Um mês antes, no Rio Grande do Norte, Bolsonaro acusou Lula de desvios de recursos da Petrobras nos governos do PT e disse que o dinheiro “daria para fazer 60 vezes a transposição do rio São Francisco”.

Alheios à disputa pelos votos e pela paternidade da obra, ribeirinhos se queixam das dificuldades para implantar projetos no entorno dos rios, o que facilitaria a criação de animais e a agricultura familiar.

João Suassuna, engenheiro agrônomo e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, diz que os benefícios da transposição podem ser limitados a curto prazo caso não haja um planejamento eficaz. “Uma boa atitude seria ampliar os bombeamentos nos eixos norte e leste. Senão, daqui a uns tempos, não vai ter água”, afirma o especialista, que critica a redução de debates com técnicos sobre o assunto.

Além dos dois eixos principais, a transposição ainda tem três ramais em fase de estudo ou com obras inacabadas. No Ceará, o Ramal do Salgado terá o edital republicado, segundo o governo federal, em razão de um erro operacional na primeira publicação, em outubro de 2021. A expectativa é a de que a estrutura seja construída em quatro anos a partir da assinatura da ordem de serviço, ainda sem previsão.

Já o Ramal do Apodi (RN) está em obras. O governo não informou o prazo para a conclusão da obra, iniciada em junho de 2021. O Ramal do Agreste, em Pernambuco, foi inaugurado por Bolsonaro em outubro de 2021, em Sertânia. No entanto, ele ainda não leva água para os municípios da região mais afetada por estiagens porque a obra da adutora do Agreste, uma rede de abastecimento, não terminou.

O governo federal disse ter investido R$ 1,1 bilhão na construção do ramal e repassado, desde 2019, R$ 289 milhões ao governo estadual, responsável pela execução. De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Regional, o governo de Pernambuco optou por iniciar a obra “do fim para o início”.

“Caso tivesse executado prioritariamente este trecho [inicial], com a conclusão do Ramal do Agreste, a água do Projeto São Francisco chegaria aos municípios contemplados nesta etapa da adutora”, afirmou.

Em nota, o Governo de Pernambuco diz que “o empreendimento já poderia estar pronto, caso o governo federal tivesse mantido o cronograma estabelecido do aporte de R$ 1,385 bilhão para conclusão”.

Em relação à ordem de execução da obra, o estado afirma ter atendido recomendação do Tribunal de Contas da União. Segundo a Compesa (Companhia Pernambucana de Saneamento), o prazo de conclusão depende do aporte federal. A primeira etapa da obra da adutora, de acordo com o governo federal, está prevista para ser entregue em junho de 2023 e atenderá 1,3 milhão de pessoas em 23 cidades do estado.

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