Foi em 19 de agosto de 2002, faltando pouco menos de dois meses para o pleito com a primeira vitória de Lula (PT), que o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) se reuniu em separado com os 4 primeiros colocados na disputa presidencial daquele ano: o próprio Lula, José Serra e Anthony Garotinho. O intuito do encontro era explicar aos candidatos o acordo que FHC havia firmado junto ao Fundo Monetário Nacional, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco Mundial (Bird), que colocava à disposição do Brasil US$37 bilhões.
A quantia era na época equivalente a pouco mais que o dobro dos US$16,3 bilhões que o Brasil possuía em reservas de moeda estrangeira (tipificadas em dólar). Na prática, o maior pacote já organizado pelo FMI, estava sendo oferecido ao Brasil como forma de demonstrar confiança nas reformas realizadas pelo país, buscando estabilizar a turbulência pela qual passava o Real. Em meio às eleições de 2002, o dólar chegou a ser cotado próximo de R$10 (quando considerado o diferencial de inflação entre Brasil e Estados Unidos), enquanto o risco Brasil atingiu 2600 pontos, o que significa dizer que, para tomar recursos no exterior, o país precisava pagar em torno de 26% a mais ao ano do que pagava o Tesouro americano.
Neste cenário, provocado em boa medida pelo temor de que o candidato que liderava as pesquisas fosse seguir um rumo radical, Lula saiu da reunião direto para um palanque no Rio de Janeiro. O clima de ‘concordância’ com o que havia sido exposto por FHC deu lugar ao Lula candidato, que ao lado de Brizola não titubeou: declarou em alto e bom som que FHC havia quebrado o país. Lula foi acompanhado em ambos os eventos pelo então presidente do PT, José Dirceu, que 2 meses antes, em junho de 2002, partiu em uma viagem para Washington com uma carta escrita a múltiplas mãos, a famosa “carta aos brasileiros”. Hoje, após os eventos da Lava Jato, sabe-se que a carta destinada a acalmar o mercado, teve mentoria exclusiva de Emílio Odebrecht.
Este jogo duplo, com um viés cínico em relação ao antecessor, marcaria toda a gestão petista. Em seus primeiros anos, Lula iria rifar assessores econômicos como Guido Mantega, o conselheiro que lhe sugeriu que o Plano Real fosse um estelionato eleitoral. Nomeou um tucano eleito deputado por Goiás para o Banco Central (Henrique Meirelles, o ex-CEO do Bank Boston), e técnicos para a Fazenda. Se no palanque Lula alardeava que FHC havia quebrado o Brasil, não uma mas 3 vezes!! No palácio, Lula seguia à risca a cartilha implantada durante a gestão anterior. Trata-se de uma tática política poderosa, que inflamou a militância e justificava ajustes duros para a militância que aguardava ansiosa pelo primeiro mandato do operário que se tornou presidente.
Mas tudo não passava disso, uma tática. Lula pode ser cínico, e um excelente jogador político, mas jamais pode-se acusá-lo de ser pouco inteligente (talvez exceto pela sua escolha sucessória).
Se FHC quebrou o Brasil, Lula tinha agora justificativa para ser duro com as ideologias do partido. Tudo era parte do grande plano para garantir a confiança no país de novo, e enfim abrir espaço para as demandas históricas das alas que o elegeram. De fato, o Brasil foi duramente afetado pelo cenário externo nos anos 90, como também o foram países como Rússia, México, Tailândia e posteriormente, em 2001, a Argentina. O mundo vivia uma bolha especulativa no mercado americano, o que tradicionalmente não é favorável aos países emergentes. Mas a resultante por aqui desta crise foram melhorias significativas nos mecanismos fiscais e nas garantias de estabilidade brasileira.
Tudo isso é o que Oswaldo Aranha defendia como o “Pêndulo Campos Salles – Rodrigues Alves”, uma sina histórica do Brasil em referência aos dois presidentes que governaram entre 1898-1906. O primeiro faz um ajuste duro e de difícil aceitação política e social, e o segundo recebe as contas em ordem e tem liberdade para expandir o gasto público e se tornar bem quisto pela sociedade. O problema desta tática, porém, é que ela depende em boa medida do cenário externo. Rodrigues Alves governou em um período onde o preço da borracha saiu de 300 para 900 libras em pouco mais de dois anos, inflando o Brasil com moeda estrangeira, e Lula, bem, Lula foi o presidente do ciclo de commodities. Com o ajuste já pronto, Rodrigues Alves pode se tornar conhecido pelas obras e mais obras na capital.
Agora, mais de 20 anos depois, Lula espera repetir a mesma tática. Mas afinal, o que são os tais R$430 bilhões de “rombo”?
O valor de R$430 bilhões, ou R$427 bilhões para ser mais preciso, tem sido levantado por um nome bastante conhecido do governo Lula: Henrique Meirelles. Meirelles, o pai do Teto de Gastos, é um dos tantos nomes especulados para tocar a política econômica lulista em 2023. Antes de tudo, é preciso deixar claro que a ideia de “rombo”, ou recursos faltando para arcar com despesas, só existe pois há um limite de gastos, criado pelo próprio Meirelles na gestão Temer, o Teto de Gastos. Este valor, calculado pelo IBRE, o Instituto Brasileiro de Economia, ligado a FGV, diz respeito a uma série de gastos, como a manutenção de um auxílio Brasil em R$600, contra R$400 previstos no orçamento (ao custo de R$52 bilhões), além do reajuste para o funcionalismo e reajuste de despesas cricionárias. Na soma, são R$120 bilhões aí. Outros gastos conhecidos são o aumento com juros e a perda de receita com pagamento de dívidas dos estados que entraram no Regime de Recuperação Fiscal, que somaria R$77 bilhões.
O IBRE calcula ainda que a normalização do preço do petróleo deva reduzir em R$86 bilhões as receitas do governo. Além da queda no preço do petróleo, pagar os precatórios, compensar a queda de receita dos estados com ICMS sobre combustíveis custaria ao todo R$144 bilhões. Como se pode ver, há expectativa de queda de receita e aumento de despesas, sendo algumas delas receitas e despesas financeiras, o que, na prática, não entra no Teto. Com uma inflação de 7%, o Teto de Gastos subiria por volta de R$112 bilhões no próximo ano. Noves fora as despesas financeiras, o impacto seria de algo próximo a R$200 bilhões faltando, ou cerca de 11-12% acima do Teto. Em 2022, o orçamento acima do Teto, com autorização do congresso, esteve em R$155 bilhões. O tal rombo, portanto, é um imenso exagero. Trata-se de uma manutenção de gastos acima do teto já existente este ano, e de ajustes que deverão ser feitos ao longo do próximo ano.
No orçamento de 2022, o déficit estimado estava em R$63 bilhões. O resultado? Fecharemos o ano com superávit de R$40 bilhões. Evidente que para o próximo ano não há a menor expectativa de que as receitas irão novamente surpreender. O pequeno boom de commodities que elevou a arrecadação neste ano deve se estabilizar. Ainda assim, o tamanho do problema não é nem perto do que se alardeia. O cenário externo prejudica e muito o país. E qual exatamente o problema nessa narrativa do país quebrado? O grande problema na narrativa do “Brasil quebrado”, está no fato de ela suscitar um clima de “liberou geral”. A mesma tática foi utilizada pelo governo Lula em 2008, quando os EUA entraram em recessão. A narrativa dizia algo como “se os países ricos estão em crise, porque devemos seguir as políticas econômicas sugeridas por eles?”, e foi assim que criamos a Grande Depressão Brasileira de 2014-16.
No cenário atual, descrito acima, tudo dependerá da confiança posta pelo governo ao mercado para que este continue a aceitar a rolagem da dívida nas taxas de juros atuais. Se houver desconfiança de que as contas públicas podem perder o controle, os juros não irão demorar a punir. O espaço para gastanças será muito menor em 2023, por inúmeras razões. A economia chinesa está desacelerando, já a americana deverá entrar em recessão, bem como a economia europeia. Será difícil controlar o câmbio, que por sua vez é um fator crucial na inflação. Com o governo gastando muito, a situação fica bem mais complicada. Em números práticos, o Brasil possui uma taxa de poupança na casa de 16% do PIB. Com um déficit nominal de 8% do PIB, o governo está tomando para rolar a própria dívida, algo em torno de metade do que famílias e empresas economizam. E a lógica de oferta e demanda é implacável. Quanto mais o governo demanda recursos para se financiar, menor é a quantidade de recursos disponíveis para empresas e famílias gastarem ou investirem, e maior os juros que o governo deverá pagar para convencer o mercado a financiá-lo.
Se o mercado não topar financiar, o risco recairia sobre duas outras áreas que podem gerar recursos ao governo: inflação e aumento de impostos. Na conta de R$430 bilhões, que será ajustada no próximo ano sem grandes dificuldades, não estão inclusas algumas promessas de campanha feitas por Lula, como a correção na tabela de Imposto de Renda Pessoa Física. Essa promessa sozinha poderia custar em torno de R$200 bilhões. Reajustes do salário mínimo acima da inflação também custam recursos significativos ao governo, tendo em vista que a previdência é a maior pagadora de Salários Mínimos no país. São cerca de 25 milhões deles todos os meses. Em suma, Lula e os cotados para o ministério, buscam emplacar a ideia de um país quebrado para fazer frente às demandas políticas e sociais que o levaram a presidência novamente, e ao embarcar nessa narrativa, podem acabar por reduzir ou danificar de forma permanente as âncoras fiscais do país em um momento de extrema incerteza sobre a economia. A consequência disso é o que poderia fazer a picanha rapidamente se tornar se tornar um coxão duro.
Autor: Felippe Hermes, jornalista e editor do Blocktrends