A mesma proposta de emenda à Constituição (PEC) dos Precatórios que ampliou o espaço fiscal para gastos no ano eleitoral pode reduzir a entrada de recursos no caixa da União já a partir deste ano. Ao flexibilizar o uso dessas condenações, a medida permitiu a utilização dos precatórios para acerto de contas com o governo, e já há empresas que planejam lançar mão da “moeda” para pagar concessões de aeroportos, multas ambientais e comprar imóveis da União.
O potencial é de até R$ 600 bilhões, incluindo também o abatimento de dívidas com o governo.
Precatórios são dívidas do governo decorrentes de decisões judiciais sobre as quais não é possível mais recorrer. Até 2021, essas dívidas deveriam ser pagas integralmente pela União no ano seguinte à indicação feita pela Justiça. A PEC, contudo, criou um teto para essa despesa: o valor pago em 2016 corrigido pela inflação.
Além disso, a mudança constitucional autorizou o uso de precatórios para quitação de dívidas, compra de ativos e pagamento de outorgas com a União.
Dois pleitos nesse sentido já foram enviados ao Ministério da Infraestrutura. Um da concessionária Inframérica, que administra o Aeroporto Internacional de Brasília (leiloado em 2012) e precisa pagar R$ 2 bilhões em outorgas, e outro da Companhia Docas do Espírito Santo (Codesa), privatizada por R$ 106 milhões para um fundo de investimento.
Integrantes do governo afirmam que há a expectativa também de uso desses papéis no pagamento da outorga do Aeroporto de Congonhas, arrematado mês passado por R$ 2,45 bilhões pela empresa espanhola Aena, e na futura concessão do Porto de Santos.
Tesouro admite impacto
O Tesouro Nacional admite que o uso de precatórios para o pagamento de outorgas, como no caso dos aeroportos, pode impactar negativamente a entrada de recursos no caixa da União, principalmente se estes valores estiverem previstos na estimativa de receitas do governo.
“Nesses casos, pode haver algum impacto sobre a expectativa de resultado primário previsto para determinado ano, se as receitas a serem usadas nesses encontros de contas estiverem previstas na Lei Orçamentária”, diz a instituição em nota.
Com a mudança autorizada pela PEC, as sentenças passaram a ser tratadas como verdadeiros títulos, inclusive permitindo que empresas que não tenham precatórios possam comprá-los de credores — que, por sua vez, aceitam um deságio sobre o valor da condenação para receber de forma imediata. Para a União, vai prevalecer o valor original do papel, sem o desconto concedido pelo credor.
O Tesouro reconhece que a PEC deve incentivar o uso de precatórios para recuperação de crédito pelas empresas.
“A expectativa (do governo) é que o volume cresça exponencialmente”, diz em nota.
Por outro lado, o órgão indica que sempre incentiva o encontro de contas. O entendimento é que isso reduz obrigações que o governo teria que pagar, compensando com créditos que não necessariamente são líquidos e certos.
“Na maioria das situações de utilização desses direitos, o impacto somente será percebido sobre os agregados de receitas e despesas primárias, sem alteração sobre o resultado primário do ente”, afirma o Tesouro.
De acordo com o Balanço Geral da União (BGU), o potencial das operações de acerto de contas é de R$ 600 bilhões, valor referente ao estoque total de ações transitadas em julgado.
O advogado Leandro Schuch relata que a procura pela compra de precatórios aumentou no escritório Schuch Advogados desde a aprovação da PEC, porque houve uma diminuição dos preços. A incerteza sobre a data do pagamento pelo poder público criada pelo teto estabelecido acabou criando um deságio maior.
— Realmente, com a nova PEC, houve uma reprecificação dos precatórios, com novos cálculos de aquisição, tendo em vista a postergação dos pagamentos. Por outro lado, os credores diretos querem se livrar logo dos precatórios — disse Schuch.
Para facilitar esse tipo de transação, o governo deve publicar ainda este mês um decreto para definir o passo a passo do acerto de contas e quais documentos devem ser apresentados, dependendo da natureza da transação — se outorga, compra de imóveis da União, pagamento de multa ambiental ou dívida tributária.
Em caso de troco, o credor ficará com uma certidão emitida pela Justiça. Além do decreto, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão que monitora a emissão de precatórios, editará uma resolução com os procedimentos necessários.
Segundo a advogada Cristiane Coelho, o mercado aguarda com expectativa a edição do decreto:
— Antes mesmo da edição do decreto, o mercado já está se movimentando. A gente espera que a regulamentação traga segurança e profissionalize esse tipo de transação.
Os fundos de investimentos são os principais intermediadores desse tipo de operação no mercado. Mas as empresas podem procurar diretamente os detentores de precatórios e propor o negócio.
Cristiane lembra que a primeira grande operação de acerto de contas ocorreu em junho, entre entes públicos, outra possibilidade trazida pela PEC. Foram a prefeitura de São Paulo e a Advocacia-Geral da União e envolveu o terreno do Aeroporto de Campo de Marte, leiloado em agosto. O encontro contábil foi de R$ 24 bilhões.
Profissionalização
Rodrigo Kanayama, professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e advogado na Kanayama Advocacia, conta que vários clientes do escritório que têm precatórios a receber vêm sendo muito procurados por empresas interessadas em comprar:
— Parece que existe uma profissionalização da negociação. Hoje são as empresas mesmo que fazem essa intermediação com os credores.
Leandro Cabral e Silva, advogado tributarista e sócio da Velloza Advogados Associados, que atua na avaliação de precatórios, ressalta que na ponta de venda de precatórios há uma grande variedade, desde pessoas físicas com direitos antigos de família até empresas. Já na ponta de quem está comprando, as instituições financeiras são maioria.
— Quem tem dinheiro na mão acaba conseguindo fazer um negócio melhor, porque a pessoa que vende o precatório precisa daquele recurso. Quem tem dinheiro não se preocupa, pode esperar — comenta o advogado.
Procurada para comentar o assunto, a Inframérica não quis se manifestar. A Aena disse, em nota, que o leilão de Congonhas ainda não foi homologado pelo governo brasileiro, e a Codesa não retornou.