Conforme reportagem da CNN Brasil, empresas que realizam centenas de voos todos os anos, tanto para clientes privados como para o poder público, já passaram por suspensões ou interdições cautelares de aeronaves por indícios de voo não autorizado, segundo documentos oficiais da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) obtidos pelo canal de tv.
A Anac já suspendeu cautelarmente ao menos 14 empresas nos últimos dois anos, segundo dados obtidos pela reportagem por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). Dessas, ao menos três tiveram contratos com órgãos do governo federal, que somam R$ 46 milhões: A.R.T. Táxi Aéreo, Rico Táxi Aéreo e Rima — Rio Madeira Aerotáxi. No caso da Rima, o dono da empresa também é diretor de um sindicato de empresas do setor e mantem contratos com o governo federal.
A suspensão cautelar, segundo a Anac, é aquela usada quando são detectados “indícios de execução de voo de forma clandestina”, visando “evitar risco iminente à segurança de voo, à integridade física de pessoas, à coletividade, à ordem pública, à continuidade dos serviços prestados ou ao interesse público”. Esse tipo de prática não é considerado uma punição, mas uma forma de evitar riscos. Ações punitivas só passaram a ser aplicadas a partir de uma resolução de 2018. Antes disso não havia possibilidade de um processo de suspensão punitiva ou cassação, por exemplo.
É possível que empresas tenham aeronaves que podem oferecer o serviço de táxi-aéreo e outras que não podem. Uma forma de garantir a legalidade da operação é checando o prefixo da aeronave que será usada no site da Anac.
A empresa A.R.T. Táxi Aéreo Ltd firmou quatro contratos com o governo federal e, de acordo com os dados do Portal da Transparência, já recebeu R$ 20,1 milhões em recursos públicos, entre 2015 e 2019 — o maior deles, com o Ministério da Saúde, de R$ 5 milhões.
Procurada, a pasta informou que a liberação do pagamento é feita após “verificação dos requisitos legais” e que, caso encontre irregularidades, “podem ser tomadas as medidas legais necessárias”. É importante destacar que, em caso de irregularidades em voos pagos, a legislação trata quem contrata como vítima, e não como responsável.
Trecho da suspensão da Art Táxi Aéreo
Foto: Anac/Reprodução
Um documento da Superintendência de Ação Fiscal da Anac do ano passado aponta que a A.R.T. foi suspensa cautelarmente por indícios de prática de transporte irregular de passageiros em julho de 2019. No parecer, a Anac disse que o ilícito cometido pela empresa é “inaceitável partindo-se de um operador aéreo certificado, que detêm todo o conhecimento da legislação vigente”. Citou ainda “o risco iminente que a continuidade das atividades envolvendo a aeronave oferece à segurança de voo”.
Relatorio da Anac sobre a Art Táxi Aéreo (05.jul.2020)
Foto: ANAC/Reprodução
A suspensão cautelar aconteceu entre 5 e 11 de julho de 2019, quando a A.R.T. assinou um termo de cessação de conduta. No documento, a A.R.T. afirma se compromete a “não mais realizar o transporte aéreo público não autorizado ou o transporte aéreo público com aeronaves fora das especificações operativas”.
Segundo a própria Anac, não se tratava de caso isolado e houve “repetição da conduta”, o que “caracteriza prática contumaz da empresa”, já que outro episódio teria sido registrado no ano anterior. O fato de que o piloto da aeronave sancionada, Claudinei Antunes Coimbra, ser também dono da empresa, “confere maior gravidade à conduta constatada”, escreveu a agência.
Questionada sobre este caso específico, a Anac afirmou que há um processo administrativo em curso sobre a A.R.T. que poderá culminar “na lavratura de autos de infração, entre outras medidas punitivas, conforme o que for constatado”. A agência informou ainda que a A.R.T. já foi multada em R$ 64 mil em 2017 por irregularidades na prestação de serviço de transporte aéreo, mas, na época das sanções, “não havia previsão legal para aplicação de cassação ou suspensão por táxi-aéreo clandestino”. A agência informou que a empresa já foi multada seis vezes por irregularidades desde 2013, sendo que em quatro ainda há recurso em análise.
A A.R.T., em nota, negou irregularidades. A empresa diz que o voo foi privado e que “não pratica de forma contumaz irregularidades que ferem a legislação aeronáutica em vigor, tanto é que se encontra autorizada pela agência reguladora — Anac — a realizar serviços aéreos”. Diz ainda que a assinatura do termo de cassação de conduta não é uma confissão de culpa, já que o documento é obrigatório e “deve constar no processo para que o mesmo seja arquivado”.
‘Caso isolado’
A Rico Táxi Aéreo Ltda, também segundo o Portal da Transparência, já recebeu R$ 15,7 milhões do governo federal, em quatro contratos firmados.
Segundo a Anac, a empresa praticou “prestação de serviço de transporte remunerado de passageiros, sem a devida autorização” em 30 de agosto de 2019, ao transportar uma cantora gospel e a banda dela no Amazonas. Por esse motivo, teve o registro suspenso no dia 3 de setembro, também de forma cautelar. No mês seguinte, um representante da empresa admitiu o caso como um “erro”, segundo a Anac registrou oficialmente. Após se comprometer a não mais fazer este tipo de prática, a suspensão foi revogada.
Documento da Anac sobre a Rico Táxi Aéreo
Foto: ANAC/Reprodução
A Rico, em nota, afirmou que o episódio em questão “é assunto de ação judicial” e que se tratou de “caso isolado”. A empresa disse que a aeronave do caso havia sido aprovada em vistoria junto ao Registro Aeronáutico brasileiro e que, seis dias antes da interdição, havia “perfeita e adequada regularização da aeronave (…) faltando, tão somente, a publicação da outorga permitindo a operação da aeronave como serviço de transporte aéreo público não-regular”. Disse ainda que “não há que se falar em prática de Taca, tendo em vista que sempre procedeu com as medidas necessárias para o regular serviço de transporte aéreo prestado sendo, o presente, um caso isolado e muito bem solucionado que não condiz com a atuação da empresa”. Taca significa transporte aéreo clandestino, como são conhecidos os voos irregulares.
Acidente e morte de servidor
Casos analisados pela reportagem mostram ainda um acidente em que houve morte de um servidor público. Em 2013, uma aeronave da empresa Construtora e Transportadora Pioneiro Ltda (Cotrap), sem licença para fazer táxi-aéreo, fez transporte para funcionários do Instituto de Pesos e Medidas do Amazonas (Ipem-AM), autarquia ligada ao governo estadual, e caiu em Manaus, deixando seis pessoas mortas — sendo uma delas um funcionário do instituto. Em seu relatório de fiscalização sobre a legalidade do voo, a Anac afirmou que a aeronave contrariou “todos os itens dos Regulamentos Brasileiros de aviação civil, colocando em risco, desnecessária e repetidamente, passageiros, tripulantes e pessoas em solo”.
Segundo explicou à reportagem o sócio da Cotrap, Vitor Marmentini, os funcionários do Ipem compraram o bilhete de passagem de outra empresa, a Apuí Táxi Aéreo, da qual ele também é sócio, mas acabaram embarcando na aeronave da Cotrap devido a um atraso com o voo comprado. Ele defende que não houve, portanto, operação irregular, já que o voo pago não foi realizado, mas sim o outro oferecido por “cordialidade”. À Anac, a Cotrap disse que sequer tinha conhecimento dessa substituição, feita “por vontade unilateral do comandante”, antes do acidente. A Anac multou administrativamente a empresa em R$ 10,5 mil.
As razões da queda da aeronave não foram esclarecidas. O relatório final do Centro de Investigações de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa) informou que, “em razão de o incêndio ter consumido praticamente toda a aeronave, durante a ação inicial não foi possível encontrar evidências que indicassem falha mecânica ou mau funcionamento de algum sistema da aeronave”. Sobre o piloto, o documento relatou que “nenhuma evidência de natureza médica foi encontrada associada com o acidente, de acordo com o histórico de inspeções de saúde recente”.
O relatório também aponta que “não havia um sistema formal da organização para selecionar, acompanhar e avaliar o desempenho dos profissionais”. Disse ainda que o piloto passava por problemas à época, tanto na empresa como familiares. “Se houvesse uma sistemática de acompanhamento dos tripulantes na empresa, as vulnerabilidades e suscetibilidades decorrentes do meio social e do clima de instabilidade nesta, que supostamente estavam afetando o desempenho do tripulante, poderiam ter sido identificadas.”