Enquanto administrações frequentemente reclamam de falta de recursos, a dívida ativa – volume de débitos cobrados pelas prefeituras – registrada por 644 municípios paulistas gira em torno de R$ 90,5 bilhões, segundo levantamento do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP). Em comparação com o estoque de débitos registrados ao final de 2022, o avanço foi de 2,5%. Para se ter uma ideia do montante devido, as 734 obras no Estado de São Paulo que o Estadão revelou que estavam atrasadas em junho, e que são das mais variadas, como habitação ou mobilidade, têm contratos da ordem de R$ 30 bilhões com os cofres públicos, ou seja, um terço do valor que os municípios não conseguem receber.
O alto volume da dívida ativa acumulado ao fim do ano passado e compilado no segundo semestre deste ano é visto por especialistas como uma escolha do contribuinte pelo pagamento de débitos que podem custar mais caro e cujas cobranças são mais firmes. A possibilidade do surgimento de programas de renegociação, com condições melhores de pagamento, é outro fator que pode estar por trás dessa estratégia. A manutenção das dívidas, porém, pode causar problemas para os devedores, como diminuição de crédito ou até penhora de bens para quitação do valor devido.
Entram na dívida ativa dos municípios contas não pagas por pessoas físicas ou jurídicas de origem tributária ou não tributária. Um exemplo da primeira é o Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU). A segunda, multas. Para tentar evitar ações judiciais, os municípios apresentam propostas para que munícipes consigam, ao menos, parcelar os valores devidos – muitas vezes, com retiradas de juros e multa para facilitar a negociação. Por lei, é vedado retirar parte ou totalidade da dívida original. No entanto, cada município pode anistiar devedores até um limite percentual que não comprometa o orçamento público, o que varia a cada caso.
José Arnaldo da Fonseca Filho, especialista em direito administrativo e tributário, alerta àqueles com dívidas junto ao município. Segundo ele, é melhor negociar e parcelar os débitos para evitar novos custos e até penhora, em caso de processo julgado procedente na Justiça.
“Se for para a execução fiscal, eles podem penhorar o carro, podem penhorar a conta bancária de quem deve. Hoje em dia tem o Sisbajud (Sistema de Busca de Ativos do Poder Judiciário), que é um sistema em que varrem o CPF rapidamente. No caso de pessoas jurídicas, elas ficam impedidas de contratar com o poder público, então elas não podem participar de uma licitação. E para a pessoa física pode perder, às vezes, o cartão de crédito, diminui o crédito. Se precisar de empréstimo, não consegue, vai financiar uma casa, não consegue”, disse o especialista.
Em alguns casos, o governo municipal “perdoa” a dívida por ser um valor irrisório e, em caso de processo na Justiça, o custo para movimentar a máquina pública é maior que o valor cobrado. No entanto, a prefeitura pode entrar com a ação e pedir suspensão do processo, o que pode causar algum transtorno para o devedor até que seja quitada a dívida ou o caso prescrito.
“A Fazenda Nacional, por exemplo, começou a fazer o protesto em cartório extrajudicial. Então, além da dívida ativa, que já tem uma restrição para pessoa, hoje em dia, vai pra um protesto em cartório extrajudicial, que é mais uma amarra para dificultar a vida da pessoa, e o cartório cobra. O cartório tem uma cobrança, inclusive, mais eficiente que a própria Fazenda Nacional”, avalia Fonseca Filho.
Outro ponto para a dívida chegar na casa dos bilhões é a alternativa utilizada por empresas e pessoas físicas no pagamento de dívidas. De acordo com Fonseca Filho, quando existem muitas dívidas, geralmente, o devedor opta a resolver primeiro as pendências que podem gerar problemas maiores.
“Seja federal, estadual, municipal, as Fazendas têm uma rotina com anistias, esse perdão de juros e de multa. E a forma de cobrança é menos agressiva que a forma que as instituições financeiras, por exemplo, agem. (O poder público) já sinaliza para o devedor que ele pode ter outra oportunidade, ele pode ter outros parcelamentos. Os bancos não fazem isso. Normalmente, o que acontece? O banco pode oferecer parcelamento, mas ele incrementa, ele aumenta a dívida, amarra o cliente e é muito mais agressivo na forma de cobrança, na forma de penhorar, na forma de pesquisar bens, é muito mais eficiente que as próprias Fazendas”, disse o especialista.
Em Guarulhos, na Grande São Paulo, segunda maior cidade do Estado, a dívida ativa no começo de 2023 era de R$ 5,4 bilhões, de acordo com o TCE. Em um ano, o município recebeu R$ 309 milhões e outros R$ 661 milhões foram cancelados da dívida ativa. Os números mais atuais divulgados da dívida ativa giram em torno de R$ 1,9 bilhão. A prefeitura local fez mutirão para tentar receber de devedores com 100% de desconto de juros no ano passado. Em 2022, o benefício foi de 90%. Esse método é utilizado por quase todos os municípios numa tentativa de conseguir angariar fundos.
Em Campinas, no interior do Estado, o saldo inicial do último ano era de R$ 12,2 bilhões. Em 12 meses, o Poder Executivo recebeu R$ 283 milhões. Cancelamentos foram de R$ 110,8 milhões. O saldo final apresentado ao TCE foi de R$ 4,4 bilhões. Dos 100 maiores devedores na cidade do interior, 97 são empresas e três pessoas físicas.
O secretário de Justiça, Peter Panutto, disse que a Prefeitura de Campinas trabalha com cronograma entre um ano e um ano e meio, em média, entre o inadimplemento e a cobrança judicial. “Vale destacar, porém, que o CNJ e o próprio TCE-SP recomendam que se dê maior atenção e tempo à cobrança extrajudicial, por força do imenso congestionamento de ações no Judiciário, o que levou a uma menor efetividade dessa cobrança quando comparado a outros meios. Por essa razão, o Município já tem estudos em andamento para atualização da legislação e ampliação de medidas para acordos amigáveis com os devedores, melhorando o cenário para todos”, disse ao Estadão.
A partir do momento em que o município recebe o valor que era devido, não há poder para gastar como bem entende. Isso dependerá de cada tributo. Há ainda a parte dos procuradores municipais que, geralmente, recebem de 10% a 20% dos ganhos oriundos de ações da dívida ativa.
Os movimentos das prefeituras para incentivar o pagamento ocorrem, principalmente, quando os municípios precisam de verba para movimentar caixa, explica Fonseca Filho. “Precisa botar dinheiro para dentro para poder girar. Não vai ter a liberdade de gastar com o que quiser, porque aí tem as amarrações orçamentárias, diretrizes orçamentárias, mas faz caixa. O Distrito Federal fez uma campanha forte ano passado para isso. É preciso chamar o pessoal a pagar. Faz pelo sistema eletrônico, a pessoa entra na internet, ela faz uma simulação de quitação de dívida, não precisa falar com ninguém, não precisa passar o constrangimento de ir ao balcão. Não tira do (valor) principal, que vem atualizado, mas tira juros e multa, que são acessórios e fazem uma grande diferença no montante”, disse.
Caso não consigam atingir metas de pagamento de dívidas de moradores ou empresas, os municípios são livres para continuar com programas de incentivo para quitação da dívida em qualquer período do ano.
Governo paulista quer receber R$ 3,7 bilhões até 2026
A nível estadual, o governo paulista estimou em fevereiro a dívida ativa em pouco mais de R$ 408 bilhões. São sete milhões de débitos inscritos, como Imposto sobre circulação de mercadorias e prestação de serviços (ICMS), Imposto de transmissão causa mortis e doação (ITCMD) e Imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA).
Com programa de incentivo ao pagamento, que ocorreu até abril, o governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) apresentou expectativa de receber R$ 700 milhões ainda em 2024, subindo para R$ 1,5 bilhão em 2025 e R$ 2,2 bilhões em 2026.