quinta-feira 26 de dezembro de 2024
Crianças observam coluna de fumaça de bombardeio subindo em Rafah, cidade no sul de Gaza que faz fronteira com o Egito — Foto: AFP
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domingo 26 de maio de 2024 às 12:43h

Empresa egípcia fatura até R$ 10 milhões por dia com travessia ilegal de palestinos

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Quando os primeiros bombardeios atingiram a Faixa de Gaza, em outubro, a família de Mohammad (nome fictício) não pensou em buscar abrigo. “Estamos acostumados com a guerra, e pensamos que o conflito pudesse durar apenas alguns dias”, disse ele ao jornal O Globo. As coisas, no entanto, mudaram rapidamente. Primeiro, eles perderam a casa. Depois, foram deslocados repetidas vezes, e hoje os oito membros vivem juntos sob uma tenda improvisada que mal os protege do calor ou frio. A esperança passou a ser deixar o enclave para trás, ainda que o caminho não seja fácil — nem barato. Com as fronteiras rigidamente controladas, a única saída do território é oferecida pela empresa egípcia Hala Consulting and Tourism Services, que promete levar palestinos para o Egito por preços que variam de US$ 5 mil a US$ 10 mil por pessoa (R$ 25,6 mil a R$ 51,2 mil), ou US$ 2,5 mil por criança (R$ 12,8 mil).

O serviço não é novo, mas as taxas aumentaram mais de 1.900% se comparadas ao período anterior à guerra, quando variavam entre US$ 250 a US$ 350 por pessoa (R$ 1,2 mil a R$ 1,7 mil). A empresa, que tem supostos vínculos com os serviços de segurança de Cairo, registra os nomes dos palestinos na lista egípcia de viajantes aprovados para entrar no país e opera o transporte da fronteira, em Rafah, até a capital do Egito. A solicitação não é simples, e as regras frequentemente mudam. De acordo com relatos de palestinos ao GLOBO, é preciso ter um parente em Cairo para fazer a solicitação, e a aprovação pode levar de três dias a um mês. Antes da operação mais recente de Israel em Rafah, classificada pelo Exército como “o último reduto” do grupo terrorista Hamas, listas de viajantes aprovados para o dia seguinte eram publicadas todas as noites no Facebook e Telegram.

Segundo o portal Middle East Eye, que analisou a lista dos viajantes publicada pela Hala, apenas em abril a empresa pode ter faturado uma média de US$ 2 milhões (R$ 10,2 milhões) por dia: foram ao menos US$ 58 milhões (R$ 298,1 milhões) de faturamento, com cerca de 10,1 mil adultos e 2,9 mil crianças cruzando a fronteira. Até o fim deste ano, caso a média de abril se mantenha, a Hala pode lucrar mais de meio bilhão de dólares (R$ 2,5 bilhões) com a chamada “lista VIP” de refugiados. Segundo o portal, porém, a renda obtida pela empresa não está sujeita a qualquer supervisão, e não há registros públicos disponíveis para examinar onde o dinheiro é gasto ou quem se beneficia dele.

Magnata aliado de al-Sisi

O que se sabe é que a empresa é propriedade do empresário egípcio Ibrahim al-Organi, importante aliado do presidente do Egito, Abdel Fatah al-Sisi. O magnata é amplamente considerado a figura tribal e empresarial mais influente na Península do Sinai. Em 2022, al-Sisi o nomeou membro da Autoridade de Desenvolvimento do Sinai, uma agência estatal com controle exclusivo sobre atividades de construção na região. A forte ligação do empresário com o governo e a dimensão das atividades da Hala na Faixa de Gaza fazem com que, para o pesquisador egípcio-americano Haisam Hassanein, não seja possível que a operação de “uma empresa desse tipo em tempos tão críticos” ocorra sem a aprovação ou o total conhecimento da segurança egípcia.

— Hoje em dia, isso é visto como uma oportunidade de trazer mais dólares para o mercado egípcio — disse Hassanein à rádio pública americana NPR, explicando que as altas taxas também refletem a política do país, que busca evitar o deslocamento permanente e em massa de civis e “militantes islâmicos” de Gaza. — Estão tentando fazer com que os palestinos comuns entendam que ir para o Egito não é uma opção fácil.

O entendimento é o mesmo que o da pesquisadora Muna Omran, professora de geopolítica da Ásia na PUC-PR. A crise econômica no Egito, pontuou, foi intensificada com o início da guerra em Gaza, já que a intensificação dos ataques de rebeldes houtis no Mar Vermelho — realizados como forma de demonstrar apoio ao Hamas — forçaram navios de carga a mudar a rota e evitar o Canal de Suez, considerável fonte de receita para Cairo e por onde passa cerca de 12% do comércio mundial. Esse cenário tem feito com que, na avaliação dela, o governo egípcio “feche os olhos” para as atividades da Hala no enclave, ao mesmo tempo que também tema que a entrada de palestinos acabe sendo um problema para o governo do autocrata al-Sisi no futuro.

— O Egito acaba aceitando porque vê isso como uma oportunidade de resolver um problema econômico. E, no desespero, a população de Gaza está pagando, embora pagar não garanta a saída, já que eles precisam esperar a chamada dos nomes — disse Omran ao GLOBO. — É um suborno às custas de um povo que está sendo exterminado.

Em pouco mais de sete meses de guerra, autoridades egípcias estimam que cerca de 83 mil palestinos tenham migrado para Cairo, e o embaixador palestino no Egito, Diab Allouh, afirmou em abril que o número de civis que buscaram abrigo na região pode chegar a 100 mil. Ainda assim, o Egito rejeitou repetidamente as acusações de que tem lucrado com a tragédia. Em fevereiro, o Ministro das Relações Exteriores egípcio, Sameh Shoukry, disse à Sky News que seu governo investiga o assunto e “tomará medidas em relação a qualquer pessoa envolvida”.

Financiamento coletivo

Para a maior parte dos palestinos, conseguir o montante de dinheiro cobrado para sair da Faixa de Gaza não é uma tarefa qualquer — em 2022, segundo o Departamento de Estado americano, o palestino médio ganhava cerca de US$ 13 dólares por dia (R$ 67). Alternativas possíveis, nesse cenário, são familiares que morem no exterior e possam arcar com as despesas, ou, mais comum, as campanhas de financiamento coletivo, geralmente feitas em nome de algum parente ou voluntário fora de Gaza, já que a maior parte das plataformas não permite que civis do enclave criem e administrem as vaquinhas on-line.

— Para uma pessoa normal em Gaza, havia, antes da guerra, poucas opções para sair de lá. Era preciso ser estudante ou comprovar a necessidade de receber tratamento médico fora do enclave. Nesses casos, a pessoa iria até um escritório do governo e solicitaria a permissão. Se tivesse uma razão válida, eles dariam uma data para a viagem. Você não podia viajar em qualquer dia — disse Mohammad ao GLOBO. — Sem esses motivos, era recomendado procurar essa empresa. Antes da guerra era mais rápido, porque menos pessoas viajavam. Agora, sei de casos em que o processo demorou um mês. Embora haja dúvidas sobre a confiabilidade da Hala, não há opção para quem quer sair de Gaza.

Após terem tido a casa bombardeada em Gaza, familiares de jornalista brasileira Marina Darmaros tentam deixar o enclave — Foto: Arquivo pessoal
Após terem tido a casa bombardeada em Gaza, familiares de jornalista brasileira Marina Darmaros tentam deixar o enclave — Foto: Arquivo pessoal

Mohammad estuda medicina no Egito, e estava lá quando a guerra começou. Sem recursos para ajudar seus familiares em Gaza, o jovem abriu uma campanha para arrecadar os US$ 30 mil (R$ 154,8 mil) necessários para a evacuação de seus pais, três irmãs e o irmão mais novo, de 10 anos. A meta, ainda que ambiciosa, não contempla a totalidade de sua família: por causa dos valores exorbitantes, outros irmãos, disse, permanecerão no enclave para “enfrentar os seus destinos”. Em dois meses, contudo, a arrecadação dele atingiu somente 9% da meta. “Não pude fazer muito”, lamentou ele, que optou por não ter o nome divulgado para proteger seu status de residência em Cairo.

— Lembro de conversar com a minha família por telefone em dezembro e, enquanto falava com eles, ouvi tiros. Eles estavam muito próximos. A mesma coisa aconteceu na semana seguinte, foi horrível — disse. — Estamos habituados a sofrer com a dor e as dificuldades da guerra, mas esta foi terrível desde o começo. Às vezes, não consigo falar com a minha família por duas semanas, e não sei se estão vivos ou mortos. Não temos uma casa para voltar, não há escolas, comida. Não há vida em Gaza após a guerra, então minha família planeja ir para o Egito recomeçar. Para ser honesto, não é fácil ter o dinheiro para viajar. É muito difícil escolher quem em sua família será protegido, e quem enfrentará esse destino.

O desafio é o mesmo para a família da jornalista brasileira Marina Darmaros. Nascida em São Paulo, ela passou grande parte de sua vida profissional na Rússia, onde conheceu o marido, Wissam Moukayed. A irmã de Moukayed, Hanan, é casada com um palestino, e os filhos do casal (sobrinhos de Darmaros) nasceram e cresceram em Gaza. Um dia após o atentado terrorista do Hamas em Israel, o prédio em que eles viviam foi bombardeado, e desde então a jornalista tenta trazê-los para o Brasil. Ela chegou a enviar cartas para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o assessor-especial da Presidência Celso Amorim, e o embaixador Alessandro Candeas, chefe do Escritório de Representação do Brasil em Ramallah, mas todas as respostas foram negativas.

— magino que possa se encaixar em uma intervenção estrangeira, porque afinal de contas os cidadãos não são brasileiros. Mas existem países que naturalizaram alguns desses cidadãos para tentar tirá-los de Gaza. Essa seria uma saída, mas tenho pouca esperança de que a gente consiga algo por meio de governos. É uma pena — disse Darmaros, que também organizou sua própria campanha para ajudar os parentes. — Minha sobrinha agora está de cama com hepatite A. É o que acontece quando as pessoas são deslocadas de suas casas e não têm mais para onde ir.

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