A Câmara dos Deputados aprovou, na terça-feira (28) o regime de tramitação de urgência para um projeto que contém dispositivos que beneficiam a operação das usinas termelétricas movidas a gás natural no Brasil. Essas instalações industriais geram energia elétrica de forma mais poluente. A reportgem é de Victor Ohana , da revista Carta Capital.
A votação ocorreu em meio a articulações do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), em prol da “agenda verde”, que supostamente estaria voltada à preservação ambiental. Lira estará com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na COP-28, em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, na semana que vem.
O projeto trata sobre o marco das usinas eólicas offshore, ou seja, as plataformas marítimas que geram eletricidade a partir do vento. A relatoria do deputado Zé Vitor (PL-MG) contém “jabutis” que deixam o mercado de usinas termelétricas mais atrativo para empresários.
“Jabuti” é um termo utilizado para definir trechos inseridos em um projeto sem relação com o conteúdo principal, geralmente com o objetivo de mudar regras sem chamar atenção.
Em seu Artigo 24, o relatório mexe na Lei 14.182/2021, que determinou a privatização da Eletrobras.
Aquela lei havia imposto uma norma que obrigou o Estado brasileiro a contratar, por 15 anos, 8 Gigawatts de energia gerada em usinas termelétricas movidas a gás natural, divididos em:
- Norte: 2,5 Gigawatts;
- Nordeste: 1 mil Gigawatts;
- Centro-Oeste: 2,5 Gigawatts;
- Sudeste: 2 Gigawatts.
A contratação ocorreria por meio de leilões.
Esses leilões oferecem a oportunidade de empresários construírem usinas termelétricas e venderem energia para as distribuidoras de energia, que por sua vez fornecem energia para os consumidores.
Ao venderem uma determinada quantidade de energia às distribuidoras, os donos das usinas recebem um valor definido no leilão. Esse valor não pode ultrapassar um “preço-teto”, que tem como base um leilão realizado em outubro de 2019.
O empresário espera que esse valor compense os seus custos com a produção de energia, como, por exemplo, a aquisição da sua matéria-prima, o gás. Um dos principais gastos para obter o gás é no pagamento do transporte, já que é preciso fazer com que ele seja retirado da costa brasileira e chegue à usina.
No entanto, houve baixa procura nos leilões, porque os empreendedores julgaram que o “preço-teto” não faz compensa os custos da produção. Com a falta de estrutura em parte do Brasil, a contratação do transporte do gás ficaria muito cara. Apenas um leilão foi realizado depois da lei, em 2022.
Com o fracasso dos leilões, não há construção de usinas termelétricas, e então o Estado não cumpre a obrigação de contratar os 8 Gigawatts de energia dessas usinas.
Diante desse quadro, o relatório em tramitação na Câmara pode baratear os custos de produção dessas usinas, o que faria o “preço-teto” passar a valer a pena e, portanto, atrairia empresários aos leilões.
De acordo com o Artigo 24, o “preço-teto” definido no leilão vai considerar apenas o valor da molécula de gás entregue na usina. Isso quer dizer que o empresário não vai mais pagar pelo transporte, apenas pelo gás.
Segundo o texto, a usina vai pagar pelo gás um preço que será definido por uma chamada pública no estado. Na prática, a distribuidora de gás local – provavelmente uma companhia pública de gás estadual – vai fazer um processo seletivo para escolher uma fornecedora de gás para a usina, sob o melhor preço.
Para o dono da usina, o negócio fica melhor, porque ele passa a pagar mais barato pela matéria-prima e, posteriormente, vai vender energia pelo mesmo preço que estava estabelecido no leilão.
Segundo fontes técnicas, o relatório facilita, portanto, a operação dessas usinas.
Em um estudo de 2022, o Instituto de Energia e Meio Ambiente mostrou que, em 2021, 13 usinas termelétricas foram responsáveis por 51% das emissões de gases com efeito estufa produzidas por 82 termelétricas listadas. Dessas 13 termelétricas, cinco eram movidas a gás natural.
“A operação das térmicas-jabutis em tempo integral por um período de pelo menos quinze anos, resultará na emissão de mais de 300 milhões de toneladas de gás carbônico equivalente (Mt CO2e) ou 20 Mt CO2e por ano”, apontou nota técnica do IEMA.
Com base na lei da privatização da Eletrobras, os custos para o Estado com a contratação compulsória resultariam em valores próximos a 192 bilhões de reais até 2036.
O relatório prevê um dispositivo que amenizaria esse impacto. No mesmo artigo, a nova lei reduziria a obrigação do Estado de comprar 8 Gigawatts e traria a imposição de apenas 4,25 Gigawatts.
Além disso, o relatório obrigaria a aquisição de energia por meio de centrais que seriam menos nocivas ao meio ambiente e menos caras do que as usinas termelétricas.
Apesar da aparente melhoria, o Estado seguiria submetido à contratação compulsória.
Desvio de objetivo e aumento de tarifas
Entidades repudiam o “jabuti” pela desvirtuação da finalidade e pelo possível aumento nas tarifas de energia.
Victor Hugo Iocca, membro da Frente Nacional dos Consumidores de Energia, critica o projeto por persistir com a contratação compulsória de usinas termelétricas, enquanto as energias hidráulica, eólica e solar são mais baratas e menos poluentes.
“A primeira pergunta que tem que ser feita é por que temos que contratar térmicas a gás no Brasil”, questiona Iocca, em entrevista a CartaCapital. “A nossa visão é que não é mais necessário o País continuar investindo em parques termelétricos tão grandes como esses que a lei está obrigando.”
Em nota, a Associação Brasileira de Grandes Consumidores de Energia e de Consumidores Livres, também afirmou que, ao deixar o custo de transporte com as distribuidoras de gás, os preços com esses custos acabarão na conta dos consumidores de energia.
Isso porque as distribuidoras de gás locais não serão remuneradas pelas usinas termelétricas no que diz respeito ao transporte do gás. Assim, terão de buscar alguma fonte para compensar esses valores.
Por outro lado, nesse cenário, não só as usinas termelétricas saem beneficiadas, como também a iniciativa privada que trabalha com o fornecimento de gás, porque o incentivo à construção dessas usinas cria uma demanda para que as empresas de gás tenham a quem vender a sua produção.
Para interlocutores ouvidos por CartaCapital na Câmara, o projeto favorece, por exemplo, para os negócios da Termogás, empresa de fornecimento de gás administrada pelo empresário Carlos Suárez, conhecido como o “rei do gás”.