Em segundo lugar nas pesquisas, Jair Bolsonaro considera duas batalhas cruciais para ser reeleito. Uma delas, conforme reportagem da revista Veja, é contra a inflação e, para vencê-la, ele anunciou um pacote de mais de 40 bilhões de reais destinado a bancar a ampliação do Auxílio Brasil, o pagamento de uma ajuda mensal de 1 000 reais a caminhoneiros autônomos e a duplicação do valor repassado a famílias carentes para ajudá-las na compra de botijão de gás. Com esse arsenal poderoso, o presidente acredita que ganhará terreno entre os eleitores mais pobres e superará Lula em outubro. Mas, como essa reviravolta ainda não ocorreu e ele teme ser derrotado, o ex-capitão tem se dedicado a uma nova ofensiva em outra trincheira. Com a ajuda dos ministros do governo e, principalmente, dos militares, Bolsonaro quer forçar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a acolher as sugestões de sua equipe sobre o processo eleitoral antes da realização da votação. Se isso não ocorrer, ele dá a entender que não reconhecerá eventual resultado desfavorável e, mais grave, que convocará o Exército para auditar o resultado final. Nessa cruzada estratégica, a arma principal do mandatário é a ameaça de confronto e de uso da força.
A tensão entre o presidente e integrantes da Justiça Eleitoral é antiga e se desenrolava com as trocas de acusações de praxe até a manhã da terça-feira 5, quando o presidente realizou uma reunião ministerial com o objetivo de insuflar a sua tropa. O encontro durou cerca de três horas, das quais pelo menos duas foram dedicadas a difundir entre os presentes as suspeitas — nunca comprovadas — de que as urnas eletrônicas não são confiáveis e serão fraudadas para derrotar Bolsonaro. Numa tentativa de dar verniz técnico às suas teorias, o presidente convocou o deputado Filipe Barros (PL-PR), que foi relator na Câmara da fracassada proposta de emenda constitucional que previa a instituição do voto impresso no Brasil. Manuseando uma pilha de papéis, Barros discorreu sobre um ataque hacker ao sistema do TSE em 2018, episódio que foi alvo de uma sindicância interna da Corte e de uma investigação da Polícia Federal, e disse que, conforme documento assinado por um funcionário graduado do próprio tribunal, a invasão pode ter fraudado o resultado de uma eleição no município de Aperibé (RJ), o que o servidor citado negou de forma peremptória a Veja.
O deputado afirmou ainda, em tom de estranhamento, que as apurações do TSE e da PF sobre o caso não avançaram, sugerindo uma blindagem indevida. Não teria ocorrido nem mesmo uma perícia no sistema do tribunal, que também teria perdido informações consideradas essenciais, pelo parlamentar, para que se descobrisse a extensão dos danos provocados pelo hacker. “O próprio TSE obstou o andamento das investigações em razão de um suposto equívoco no armazenamento de evidências relacionadas a uma gravíssima falha de segurança. É definitivamente um cenário alarmante”, declarou Barros. A partir daí, o debate passou para o campo político, com sinais claros de que o presidente e os militares sob suas ordens cogitam recorrer a tudo para “fiscalizar” e “auditar” o processo eleitoral. Peça-chave nessa estratégia, o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio de Oliveira, fez uma fala contundente contra a cúpula da Justiça Eleitoral, afirmando que as Forças Armadas foram convidadas para colaborar com a transparência das eleições, mas agora são ignoradas, desrespeitadas e negligenciadas. Ele alegou que não há diálogo de fato entre as partes, nem discussões técnicas, e reclamou que o tribunal não respondeu à maioria das sugestões encaminhadas por sua equipe.
Veio então o petardo: segundo o general, as Forças Armadas, diante dessa situação, pretendem elaborar um cronograma para “exigir” do TSE as respostas aos seus questionamentos. Se preciso for, convocarão a comissão de transparência do tribunal para prestar os esclarecimentos que consideram necessários. Caso as respostas solicitadas não sejam dadas a tempo e a contento, será feita por conta própria uma auditoria da votação. Ou seja: se a ameaça for cumprida, os militares podem, em última instância, não reconhecer uma eventual vitória de Lula. Por ordem de Bolsonaro, o PL, partido do presidente, contratará uma empresa para auditar as eleições, embora não se saiba como isso será possível. “As Forças Armadas terão um cronograma de fiscalização quer o TSE queira ou não”, disse um participante da reunião, resumindo o teor da fala do ministro da Defesa. Sob o olhar atento do chefe, outros auxiliares entraram na discussão. Titular da Advocacia-Geral da União (AGU), Bruno Bianco ecoou um discurso caro a Bolsonaro e disse que as eleições não pertencem a três caras togados, numa referência aos ministros do STF Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Alexandre de Moraes, que são o último, o atual e o futuro presidentes do TSE. “As eleições não pertencem a um poder só, pertencem a todos os poderes. As eleições são de todos os brasileiros”, declarou Bianco.
Também presente à reunião, o ministro da Controladoria-Geral da União (CGU), Wagner Rosário, lembrou que, quando a Câmara analisava a PEC do voto impresso, o Tribunal de Contas da União correu para se manifestar, de forma preliminar, pela confiabilidade e a segurança das urnas eletrônicas, que eram objeto de uma auditoria interna do TCU. Bolsonaro quis saber qual ministro da Corte de Contas teria tomado tal iniciativa. “Bruno Dantas”, ele ouviu como resposta. A reação do presidente foi uma mistura de impropérios com a acusação de que Dantas agiu por motivações políticas. Bolsonaro e seus aliados estão convencidos de que há uma conspirata em curso para tirá-lo do poder. O presidente, aliás, abriu a reunião ministerial falando por cerca de trinta minutos, e citando o que seria indício de fraude na eleição vencida pela petista Dilma Rousseff em 2014. Segundo ele (em sua visão imprecisa e enviesada), no transcorrer da apuração foi registrada uma estranha e inexplicável alternância na liderança — ora Dilma aparecia na frente, ora era Aécio Neves, o então candidato do PSDB, sem que houvesse uma explicação minimamente razoável para isso. “Se o Lula ganhar no voto contado em outro canto, eu entrego a faixa a ele feliz e contente”, disse Bolsonaro.
Na cabeça equivocada do presidente, tudo faz parte de um grande plano que envolveria os ministros do Supremo Tribunal Federal e do TSE. Primeiro, a Justiça tirou da cadeia o ex-presidente Lula, depois tornou-o elegível e, na sequência, age para impedir o voto impresso. Nada disso seria fruto do acaso. Recentemente, chegou ao Planalto mais um ingrediente para reforçar essa teoria — um relato informando sobre laços anormais entre o gabinete do ministro Luís Barroso e duas das maiores empresas de tecnologia do planeta. São citados dois casos como exemplo do que seria parte de uma estratégia para prejudicar a campanha do presidente. O primeiro é o de uma advogada, ex-assessora do gabinete do ministro, que, após deixar o tribunal, em janeiro deste ano, foi trabalhar como consultora de políticas públicas do WhatsApp, num setor que vai receber e investigar denúncias de uso irregular do aplicativo durante as eleições. O segundo caso também cita um advogado ligado ao ministro que teria entre seus clientes o Google, empresa que também firmou uma parceria com o tribunal para ajudar a combater a desinformação. Haveria, de acordo com o dossiê, um claro conflito de interesses — na verdade, o que existe é uma insanidade completa.
Até uma conferência que será realizada em novembro em Nova York virou evidência da conspirata. Motivo: um dos painéis versará sobre “A economia do Brasil com o novo governo”. Entre os palestrantes convidados para a conferência, estão ministros do STF, políticos e economistas identificados como opositores ao presidente. O “novo governo”, para os bolsonaristas, seria uma referência a um futuro governo Lula. Ou seja: na visão do presidente e de seus auxiliares, meses antes da eleição já se sabe quem será o vencedor. Na quinta-feira, a empresa organizadora do evento, que pertence ao ex-governador João Doria, mudou o nome da palestra para “A Economia no Brasil Pós-Eleição”. Provável vice na chapa à reeleição, o general Braga Netto também está pintado para a guerra. Conforme revelado pelo jornal O Globo, ele disse numa reunião com empresários que não haverá eleição se não for realizada a auditoria dos votos defendida pelo presidente. Depois da divulgação da notícia, Braga Netto afirmou ter sido mal interpretado, mas não explicou o que de fato quis dizer. No Palácio, todos sabem que o ministro vem, diariamente, atormentando a cabeça de Bolsonaro com essas teorias amalucadas.
No governo, Barroso é visto como um dos três ministros (ao lado de Edson Fachin e Alexandre de Moraes) que se movem para derrubar o presidente. Obviamente, não existe isso. Em setembro passado, quando presidia o TSE, ele inclusive convidou as Forças Armadas para integrar o comitê de transparência eleitoral como forma de tentar segurar um pouco o ímpeto dos discursos do presidente contra a segurança e a confiabilidade das urnas eletrônicas. Foi um belo gesto de apaziguamento, mas a boa intenção acabou alimentando ainda mais a confusão. Sob ordens primeiro de Braga Netto e agora de Paulo Sérgio de Oliveira, os militares passaram, na prática, a engrossar o coro puxado por Bolsonaro, sempre simulando questões técnicas. Barroso recorreu ao convite meses depois de o presidente protagonizar uma live em que expunha supostas descobertas de vulnerabilidades nas urnas eletrônicas e detalhava ataques hackers contra tribunais regionais eleitorais e sistemas informatizados ligados às eleições.
Os dados citados pelo mandatário constavam de um dos mais de 100 inquéritos sigilosos que tramitam na Polícia Federal para apurar ataques cibernéticos a instituições públicas e — segundo monitoramento do TSE na dark web — tornaram-se uma das informações mais compartilhadas em chats que discutem as fictícias fragilidades do processo eleitoral brasileiro. A tal denúncia de fraude na eleição municipal de Aperibé, mencionada na reunião ministerial, está no meio desse cipoal de apurações. Em 2018, o hacker copiou duas senhas do juiz eleitoral que coordenaria as eleições suplementares para escolher o novo prefeito desse município após o titular do cargo ter sido cassado. As senhas foram vazadas e divulgadas na dark web. O TSE relatou à polícia que, na pior das hipóteses, o hacker poderia entrar no sistema de registro das candidaturas a prefeito e apagar nomes ou trocar os números de identificação que os candidatos utilizam nas urnas. Mas ressaltou que, se isso ocorresse, não haveria fraude no resultado das eleições porque os softwares das urnas simplesmente não reconheceriam as alterações e sequer começariam a funcionar. Evidentemente, nenhum incidente foi detectado na disputa que elegeu o novo prefeito.
Amplamente criticadas pelos irresponsáveis bolsonaristas, as urnas eletrônicas do sistema eleitoral brasileiro têm um retrospecto impecável. Elas foram implantadas no Brasil nas eleições municipais de 1996, e até hoje não houve comprovação de um único caso de fraude, o que era comum no século passado, quando eram usadas cédulas de papel e apuração manual dos votos. Naquela época, principalmente nos rincões, as urnas eram substituídas por outras — devidamente fraudadas — ao sabor das conveniências dos poderosos de turno, que recorriam a esse tipo de manobra para se perpetuar no poder. As urnas eletrônicas, que têm mais de trinta barreiras de segurança, também aumentaram a rapidez da votação e da apuração. Parece algo secundário, mas não é. Nos Estados Unidos, onde ainda há votos em cédulas de papel e a totalização é mais demorada, Donald Trump passou a pressionar aliados nos estados para que “conseguissem” mais votos ao perceber a iminência da derrota. Ou seja: o Brasil ganhou em celeridade, transparência e blindagem.
Desde o início do ano, numa tentativa de composição, Edson Fachin, o atual presidente do TSE, já se reuniu uma vez com Braga Netto e duas com o ministro Paulo Sérgio de Oliveira. Até aqui, nada funcionou. A avaliação majoritária no tribunal é de que o objetivo dos questionamentos dos militares, descontextualizados e com premissas erradas, não é comprovar qualquer fraude, mas apenas semear uma suspeição que, na eleição presidencial mais acirrada da história, provocaria uma tremenda confusão. Na quarta-feira 6, em um evento realizado em Washington, nos Estados Unidos, Fachin conclamou a população brasileira a respeitar o resultado da votação e prezar pela democracia. “Nós poderemos ter um episódio ainda mais agravado do que 6 de janeiro daqui do Capitólio”, declarou o ministro, referindo-se à invasão da sede do Legislativo americano por apoiadores de Trump (alguém que inspira Bolsonaro em vários aspectos).
Diante de tal cenário, é muito preocupante a postura de confronto de Bolsonaro com o TSE e com o sistema eleitoral brasileiro — que, inclusive, o elegeu sete vezes a deputado federal e uma a presidente. Ao longo de sua carreira política, ele fez diversas manifestações de apoio à ditadura militar, o que permite o raciocínio de que estaria pavimentando o caminho para questionar a legitimidade da eleição em caso de derrota ou, pior ainda, tentando inviabilizar a realização do pleito. Além de governar o Brasil, Bolsonaro deveria neste momento destacar outros aspectos de sua campanha, mostrando as diferenças de seu governo para as gestões petistas, por que a direita seria melhor que a esquerda, ou o que vai fazer com a economia, o assunto mais importante para gerar riqueza e tirar milhões de brasileiros da fome. Realizar uma reunião no Palácio do Planalto com a presença de ministros e numa espécie de motim contra o processo de votação brasileiro é absolutamente inaceitável, e pode se desdobrar numa grave ameaça à democracia, algo que seria desastroso para o país. A senha para a confusão, de fato, está dada.
Publicado em VEJA de 13 de julho de 2022, edição nº 2797