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terça-feira 1 de agosto de 2023 às 07:08h

Em 10 anos, uso da Lei Anticorrupção foi além da Lava Jato

JUSTIÇA, NOTÍCIAS


Segundo artigo de Bruno Lupion, da DW, no rescaldo das Jornadas de Junho e sob intensa pressão popular por ética no trato da coisa pública, a então presidente, Dilma Rousseff, sancionava, há exatos dez anos, a Lei Anticorrupção. A norma mudou o paradigma do combate à corrupção no país ao punir no bolso as empresas que pagassem propina e ao criar estímulos para elas mesmas adotarem mecanismos de controle interno e colaborar com o governo ao admitirem irregularidades.

Até então, as leis brasileiras sobre o tema eram mais focadas na punição dos corrompidos, e os incentivos para que as empresas adotassem estruturas de conformidade, mais conhecidas pelo termo em inglês compliance, engatinhavam – o que fazia o Brasil destoar da prática dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

O que os movimentos por ética empresarial que participaram da elaboração da norma não previam era que, menos de um ano depois da sanção, um furacão jurídico-político chamado Operação Lava Jato atrairia para si o grosso do debate e da prática de combate à corrupção no país – trazendo, a reboque, a recém-nascida lei, que seria regulamentada apenas em 2015.

Como resultado, um dos eixos da nova norma – a possibilidade de as empresas admitirem o malfeito e colaborarem com o governo em troca de redução das penalidades, por meio dos acordos de leniência – tornou-se também um dos eixos da Lava Jato. Isso ocorreu apesar de a lei não prever explicitamente que o Ministério Público (MP) fosse competente para conduzir esse tipo de acordo.

A Lei Anticorrupção não pune criminalmente as empresas, mas administrativa e civilmente, com multas, proibição de participar de licitações e obrigação de reparar o dano, por exemplo.

Aplicação intensa pela empresas

O efeito da Lava Jato na aplicação da lei faz com que alguns especialistas separem a história da Lei Anticorrupção em dois momentos. Os primeiros cinco anos, sob efeito da força-tarefa de Curitiba, são marcados por casos envolvendo grandes empresas e por grandes dúvidas sobre quem seria competente para aplicar os acordos de leniência.

O segundo momento caracteriza-se por uma maior experiência dos órgãos responsáveis e por casos menos midiáticos e se beneficia de um acordo de 2020 que busca ampliar a coordenação na aplicação da lei, assinado por Supremo Tribunal Federal, Controladoria-Geral da União (CGU), Advocacia-Geral da União, Tribunal de Contas da União e Ministério da Justiça – com a notável ausência do Ministério Público Federal.

Disputas sobre competências à parte, é fato que o percentual de empresas no Brasil com órgãos e políticas internas de conformidade cresceu desde que a lei entrou em vigor. Uma pesquisa feita pela consultoria Deloitte mostra que, no período de 2016 a 2018, 40% de uma amostra de 116 empresas adotavam diretrizes da Lei Anticorrupção. Em 2022, o percentual era de 70%. A adoção desses parâmetros pode beneficiá-las com redução de multas futuras se forem pegas em casos de corrupção.

Foi também a partir da Lei Anticorrupção que a chamada indústria do compliance decolou no país, ampliando as oportunidades de negócio para consultorias e fortalecendo carreiras então pouco conhecidas, como a de compliance officer.

“Independente do juízo se [a atuação do MP] é legal ou não, a lei teve uma aplicação intensa nesses dez anos, e as empresas entenderam a importância de desenvolver mecanismos de integridade privada e compliance”, afirma à DW Vinícius de Carvalho, ministro da Controladoria Geral da União (CGU), órgão responsável pela aplicação da lei no âmbito do governo federal. “Isso não significa que não haja necessidade de aprimoramentos nos próximos anos.”

Quem celebra o acordo de leniência?

O problema mais conhecido da lei até hoje é o debate sobre se o Ministério Público pode ou não celebrar acordos de leniência. A professora Raquel de Mattos Pimenta, da FGV Direito SP e especialista em políticas anticorrupção, afirma que a norma não dá competência explícita ao Ministério Público para responsabilização administrativa e civil.

“Ela silencia sobre o Ministério Público, o que nos faz imaginar que a principal competência para aplicar essa lei é da autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública. No âmbito do Executivo federal, com uma concentração na CGU”, afirma.

Na época da Lava Jato, diz Pimenta, havia uma “superabilitação” do MP que levou a um processo de construção de sua competência para fazer esses acordos, reconhecido pelas empresas que os assinaram. Isso consolidou a legitimidade dos procuradores da República para negociar a leniência com as empresas, da mesma forma como fazem nos casos de colaboração premiada com pessoas físicas na esfera criminal.

Até hoje, o Supremo não se manifestou sobre se o MP pode ou não firmar acordos de leniência. Há uma ação na corte proposta pelos partidos PSOL, PCdoB e Solidariedade questionando os acordos de leniência assinados pelo MP no âmbito da Lava Jato até 2020. Na última quarta-feira, o relator, ministro André Mendonça, decidiu que a ação será julgada diretamente pelo plenário, sem análise de liminar.

A 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, sobre combate à corrupção, argumenta que a Lei Anticorrupção e a Lei das Organizações Criminosas – que regulamenta as colaborações premiadas e também foi sancionada por Dilma em agosto de 2013 – fazem parte de um “microssistema sancionatório” no qual o Ministério Público é legitimado a atuar, e que a leniência é “antes de mais nada, instrumento de investigação”.

O diretor-presidente do Instituto Ethos, Caio Magri, que participou dos debates para a criação da lei, é crítico ao efeito da Lava Jato na aplicação da lei. “A lei foi aprovada num impulso muito positivo de mobilização e visão das questões centrais para prevenir e combater a corrupção. A perspectiva que vem depois é moralista e punitivista. Curitiba e o Ministério Público atacaram a lei de forma muito forte, especialmente na dosagem [das penalidades], impactando nas empresas de maneira trágica”, diz.

Carvalho, ministro da CGU, afirma que seu papel é trabalhar com o MP “da melhor forma possível”, e que a CGU vem dialogando com a 5ª Câmara de Coordenação e Revisão com o objetivo de “alinhar procedimentos e metodologias” para que as empresas “saibam quais são nossos critérios de análise de provas e como avaliamos os acordos”.

E daqui para frente?

Além da questão da competência para os acordos de leniência, há debates entre os especialistas sobre como ligar a responsabilização das pessoas físicas à das pessoas jurídicas em casos de corrupção – o que não está previsto na lei –, sobre quais informações a empresa deve compartilhar em acordos de leniência e sobre qual deve ser a punição adequada, que faça valer a lei, mas evite que as empresas quebrem, levando consigo empregos e estruturas produtivas.

Não há, no Congresso ou no governo federal, um debate sobre reformar a Lei Anticorrupção. E isso nem seria o ideal neste momento, avalia Pimenta, da FGV Direito SP. Ela aponta que a aplicação da norma, ainda recente, poderia ser aperfeiçoada por reformas incrementais entre os órgãos, como a CGU e o MP.

“Quanto mais os órgãos forem claros sobre o que esperam da responsabilidade das pessoas jurídicas, melhores e mais atraentes esses instrumentos se tornam. Essa é a experiência internacional – o Departamento de Justiça dos EUA, principal exemplo de punição de atos de corrupção, solta guias dizendo o que espera da colaboração de empresas e pessoas físicas”, diz.

Ela também ressalta a importância de os órgãos de fiscalização aprimorarem sua capacidade de investigação de irregularidades e de responsabilização das empresas – porque, sem medo de serem pegas, a tendência é de elas reduzirem os gastos com conformidade.

“Tivemos a explosão da indústria do compliance, e agora estamos num momento de sofisticação, mas esse movimento só vai continuar se valer a pena para a empresa gastar esse dinheiro, porque compliance e integridade são caros”, diz. “As empresas não fazem isso apenas porque isso se alinha aos propósitos delas – pode até se alinhar, mas isso traz benefícios se elas forem eventualmente responsabilizadas.”

Carvalho, da CGU, tem avaliação semelhante. Ele diz que a Lei Anticorrupção só terá eficácia duradoura se o governo aprimorar sua capacidade de detecção de ilícitos, algo que ele afirma estar trabalhando para fazer. Carvalho presidiu o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) de 2012 a 2016 – órgão que trouxe os acordos de leniência para a prática jurídica brasileira, mas no contexto de combate aos cartéis, e não no de danos à administração pública.

“Quando se fala em impunidade, as pessoas em geral pensam em aumento de pena. Mas há um elemento muito relevante que diz respeito à capacidade de detecção do ilícito. Se você não gera novos casos e investigações, o acordo de leniência deixa de ser atrativo, pois uma das coisas que gera essa atratividade é a preocupação da empresa em ser identificada”, afirma.

Magri, do Instituto Ethos, expressa preocupação com o outro lado dessa relação: a sobrevivência das empresas flagradas, não pelo bem de seus controladores, mas pela riqueza que geram à sociedade. Ele defende que o debate sobre os dez anos da lei estimule os órgãos responsáveis a buscarem um equilíbrio que permita às empresas punidas seguirem funcionando, mas com estruturas melhoradas e empregos preservados. “Prefiro chamar essa norma de Lei da Empresa Limpa”, diz.

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