Conhecido por cunhar o termo “lulismo”, o cientista político e professor da USP André Singer acompanha com atenção assuntos como o desempenho do atual governo, as divisões da direita no Brasil e as transformações do eleitorado nos Estados Unidos. Filiado ao PT, ex-porta-voz e secretário de imprensa nos primeiros mandatos de Lula, Singer entende que o retorno de Donald Trump representa um risco às democracias, inclusive a brasileira.
A vitória de Trump sinaliza para uma nova onda conservadora?
Aparentemente, ele ganhou porque uma parte importante do eleitorado, bem maior do que se previa nas pesquisas, estava insatisfeita com o governo Biden. As primeiras análises sublinham esse ponto e a relação disso com a inflação, que pode ser de natureza mundial. Tivemos a pandemia, a guerra da Ucrânia e o conflito de Gaza como elementos que desorganizam cadeias produtivas. Significa que a eleição de Trump pode não ter sido ocasionada por uma onda conservadora, mas talvez ela venha a ocasionar uma. Isso tem impacto direto no Brasil. A eleição do Bolsonaro em 2018 está relacionada à eleição do Trump em 2016.
Há quem entenda que o resultado poderia ajudar a reverter a inelegibilidade de Bolsonaro.
Eu penso, com os elementos que eu disponho hoje, que isso não será revertido, mas temos que reconhecer que a eleição do Trump joga água no moinho da extrema direita no mundo todo.
A democracia do Brasil anda em uma espécie de gelo fino?
A democracia brasileira é jovem, diferentemente da norte-americana. Por lá, em que pese a sua longa tradição, ela própria está andando sobre gelo fino, porque elegeu pela segunda vez um candidato nitidamente contrário à democracia. No Brasil, estamos no meio de um governo democrático, como foi o de Biden. Dois anos atrás, o ambiente dos Estados Unidos era mais descontraído, como é hoje no Brasil. Porém, se olharmos um pouquinho adiante, eu diria que sim, há riscos.
O que as eleições municipais dizem sobre a força do bolsonarismo?
O fato de Bolsonaro estar inelegível deixa o bolsonarismo meio em suspenso. A minha interpretação é que, apesar das muitas contradições, houve uma tendência no sentido de o bolsonarismo se consolidar, mas talvez sem o Bolsonaro, e a razão central desse acontecimento é a inelegibilidade. Acho que o que o (Pablo) Marçal fez foi reativar o que eu chamaria de uma pulsão de extrema direita. Ele pode ser a continuação do bolsonarismo.
Bolsonaro se prejudicou com sua indefinição diante da candidatura de Marçal?
Ele foi e voltou quatro vezes, criticando e apoiando (Marçal). Do ponto de vista da liderança, isso foi bastante prejudicial, porque o desautorizou explicitamente. Marçal disse e mostrou que não dependia da liderança dele. Visto como a eleição terminou, existe uma divisão no bolsonarismo. O Tarcísio (de Freitas, governador de SP) está dizendo aquilo que o Valdemar Costa Neto (presidente do PL) já disse: o campo da direita não ganha se não estiver unido, não adianta tentar uma candidatura bolsonarista raiz. Não é que ela não tenha força, tanto que candidatos bolsonaristas foram para o segundo turno em Belo Horizonte, Goiânia, Fortaleza e Curitiba, mas perderam.
Quão frágil é a coalizão do presidente Lula para 2026?
Acho que há uma fragilidade de base, por assim dizer, de partida, mas quando eu digo fragilidade não quer dizer que ela não é viável. Ela foi viável e pode voltar a ser. É uma coalizão que, do ponto de vista de classe, envolve juntar os da base da pirâmide com uma parte dos mais ricos, que decidiu apoiar Lula apenas no segundo turno, em uma aliança que se mostrou decisiva, porque a diferença foi muito pequena, e cujos programas, sobretudo do ponto de vista econômico, são opostos.
O resultado eleitoral do PT abriu um debate interno sobre moderar ou não o discurso, fincar bandeiras na esquerda ou buscar alianças conservadoras.
Para ganhar uma eleição, ou pelo menos ser competitivo, precisa-se avaliar qual a tendência do eleitorado, quais as alianças possíveis e montar uma estratégia. Por outro lado, existe um aspecto que não é eleitoral, e sim programático. Se a esquerda não conseguir caracterizar o seu programa com o que ela entende como concepção de mundo, ela perde a sua razão de ser. Ela precisa manter uma orientação programática que se expresse de forma moderada, mas não chegue ao ponto de descaracterizar a sua posição de fundo.
O que explica a baixa aprovação do governo Lula mesmo com indicadores econômicos favoráveis?
Lula continua sendo apoiado pela base da pirâmide, o que não é pouco importante, porque demonstra solidez na base do lulismo, mas há um problema nos setores intermediários. Para esses setores serem atendidos, é preciso uma mudança econômica maior. O Brasil teria de se reindustrializar, porque isso significa melhores empregos com melhores salários.
A esquerda conseguiu pautar o debate e furar a bolha com a PEC contra a escala 6×1?
Sem dúvida, essa pauta da jornada de trabalho é um elemento que estava faltando. A esquerda conseguiu colocar no centro do debate um tema de interesse da classe trabalhadora. Agora, é preciso fazer uma distinção entre esse acontecimento e o que ocorreu nas eleições. Porque, sobretudo em São Paulo, veio à tona uma outra dimensão que não é captada por essa proposta, a questão do empreendedorismo.
O discurso empreendedor é individualista. Representa uma dificuldade?
Sim. A esquerda não pode aderir a isso porque, se aderir, ela acaba como esquerda. Ela vai ter que obrigatoriamente elaborar propostas e ações que sejam compatíveis com a realidade e com essa proposta final.
Existe alguma alternativa a Lula na esquerda, caso ele não queira disputar as eleições?
Não vejo como traçar um perfil alternativo. É uma singularidade brasileira, porque de certa forma Lula chegou nessa condição porque o lulismo existe e não é muito transferível. Hoje não há alguém que se aproxime de Lula em termos de carisma, assim como não há do lado de Bolsonaro, que tem uma comunicação popular só comparável à do Lula, em segmentos distintos.
Como avalia a tentativa de atentado recente na Praça dos Três Poderes?
É um episódio grande, que expressa o teor de violência envolvido no que chamo de pulsão de extrema direita. É uma espécie de reedição do 8 de Janeiro, porque o ataque mirou a democracia.