Em um olhar mais superficial, o resultado da votação de 2 de outubro é muito parecido com o de quatro anos atrás, quando foram para o segundo turno dois candidatos — Jair Bolsonaro e Fernando Haddad — alimentados pela força do antipetismo e pela polarização política. A mensagem emitida pelas urnas agora, no entanto, é muito mais profunda e complexa, e vai além da escolha entre Lula e Bolsonaro. Ganhe quem ganhar, o novo presidente governará um país, a partir de janeiro de 2023, em que os conservadores fincaram sua bandeira não só na Praça dos Três Poderes, mas na própria sociedade. Os eleitores mostraram claramente que o pêndulo ideológico, por muito tempo estacionado entre o centro e a esquerda, mudou e oscilou para a direita.
Não foi exatamente uma virada inesperada. O conservadorismo estava latente na alma nacional, mas de forma envergonhada, disfarçado sob a fachada centrista. Não mais. Empurrada por uma série de fatores tanto no cenário doméstico quanto soprados por ventos internacionais, uma multidão de brasileiros postou-se sem filtros à direita do espectro político. “O conservadorismo saiu do armário”, resume a cientista política Camila Rocha, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
Moldada sobre três bases — a católica, a escravagista e a latifundiária —, tripé exposto com genialidade em Casa-Grande & Senzala, livro do sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987), a identidade nacional nasceu e cresceu conservadora, cimentada em preceitos religiosos e morais escorados na tradição. A efervescência social associada ao fim da ditadura militar chacoalhou esse estado de coisas — os anos de chumbo foram sepultados por um ambiente progressista como nunca se vira antes, cristalizado na Constituição de 1988, plural e inclusiva. Os conservadores ou se calavam, ou caíam na trincheira da radicalização e eram ridicularizados — condição que Bolsonaro, histriônico e boquirroto como parlamentar, conhece muito bem. Esse grupo tradicionalista foi remoendo sua insatisfação, alimentada pelos governos reformistas do PSDB e, principalmente, do PT. A Operação Lava-Jato serviu de gatilho para a explosão do descontentamento em protestos, já embalados em amarelo, em 2013 e nos meses que antecederam a queda do governo de Dilma Rousseff.
A direita brasileira mais aguerrida, empunhando a bandeira anticorrupção (que não era só dela, mas da qual se apoderou) e impulsionada pela ascensão do nacionalismo radical na Europa e nos Estados Unidos de Trump, em 2017, subiu no palanque e chegou ao poder. Seguiu-se então uma sequência de tropeços e equívocos embalados por um discurso de ódio associado ao negacionismo, atalho para se imaginar que fracassaria na arena política. Ao contrário, os conservadores ganharam tração, expressada na reeleição de nove governadores bolsonaristas no primeiro turno e, mais significativo ainda, na ocupação de quase todas as vagas para o Senado. “Começamos há vinte anos, fazendo reuniões com não mais que trinta pessoas, passando nossos valores adiante”, diz o pastor evangélico Magno Malta (PL), senador eleito pelo Espírito Santo e um dos pilares da muralha conservadora no Congresso.
No caldeirão conservador, o guisado temperado pelo antipetismo foi engrossado pela rejeição ao aborto, aos direitos dos homossexuais, à liberação das drogas e a outras pautas progressistas vistas como um desrespeito aos valores tradicionais. Direitistas extremados sempre foram contra tudo isso, mas agora se sentem à vontade para expor sua opinião na mesa do bar, no jantar em família, na reunião de negócios e, claro, no Congresso. “Antagonizar os progressistas é minha guerra genuína”, avisa, na ágora das redes sociais, Nikolas Ferreira, 26 anos, deputado federal mais votado do Brasil (1,5 milhão de votos). Vereador por Belo Horizonte, ele começou a carreira de influenciador fazendo palestras para grupos de jovens em igrejas evangélicas e batendo numa única tecla: o objetivo da esquerda é destruir a família e a tradição.
O desagrado desse segmento que varreu as urnas se esparrama pelos campos político e econômico e pelas entidades que os regem. Viceja a ideia de que o sistema não funciona, por ser atavicamente corrupto e ineficiente. “Ser conservador hoje em dia é ser antissistema, colocar-se contra instituições como o STF e a Câmara dos Deputados”, afirma a cientista política Luciana Veiga, da Unirio. Um outro aspecto fundamental do conservadorismo é o desconforto com a intromissão exagerada do Estado, que a esquerda não soube detectar. “O Estado é inchado, não funciona”, diz Júlio César dos Santos, 41 anos, evangélico e morador da Baixada Fluminense, no Rio, dando voz a uma fatia da população que habita as franjas das capitais e o interior, e quer empreender. Vendedor autônomo de medicamentos, Santos, que votou de cabo a rabo em candidatos do bolsonarismo, desdenha de quem não luta para melhorar de vida. “Fica todo mundo parado, esperando cair o valor na conta”, dispara.
Esse sentimento se encaixa na pregação das igrejas evangélicas — poderosíssimo tambor dos chamados valores tradicionais. O filósofo alemão Max Weber (1864-1920), estudioso do tema, apontou que, enquanto o capitalismo condenava o lucro e a usura, o calvinismo (derivação protestante que se espalhou pela Europa) legitimava o trabalho e a poupança. Não por acaso, a ampliação do tom conservador, atrelado à vontade de “ganhar a vida”, sem o paternalismo estatal, está diretamente ligada ao crescimento das vertentes evangélicas no Brasil, contingente que abarca hoje um quarto da população. É no púlpito das igrejas, sobretudo das denominações pentecostais, que o mantra “Deus, pátria e família” — mote do movimento abraçado por Bolsonaro em sua campanha — cresceu e se multiplicou. “Os evangélicos se apresentam como a grande voz do conservadorismo. São as igrejas que articulam o discurso em torno de um projeto político para o qual Bolsonaro teria sido escolhido para concretizar”, analisa o antropólogo Ronaldo Almeida. Expoente desse pensamento, a pastora Damares Alves, ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, recebeu uma enxurrada de votos para o Senado repisando argumentos simplistas e, muitas vezes, alheios à realidade, ao condenar a liberalização dos costumes. “Bolsonaro tem coragem espiritual. Deus não faz pacto com o covarde”, decreta a dona de casa Eliane Hauer, 42 anos, frequentadora da Assembleia de Deus.
Comprovando o tamanho de seu impacto nestas eleições, a questão religiosa foi a primeira a pipocar quando se definiram os candidatos ao Planalto no segundo turno. Mal fechadas as urnas, grupos bolsonaristas difundiram um vídeo que associava Lula ao satanismo (ciente do estrago desse tipo de acusação, o petista emitiu comunicado negando tudo). Os apoiadores de Lula, por sua vez, postaram nas redes uma antiga gravação de Bolsonaro em lojas maçônicas — o cristianismo tradicionalmente rechaça os maçons. Por trás da guerra travada nas redes, reside, de lado a lado, o objetivo crucial de atrair (ou ao menos não espantar) o eleitorado conservador.
A radicalização e a pregação raivosa são visíveis e recorrentes no avanço conservador no Brasil, insufladas inclusive pelo próprio Bolsonaro — e aí mora o perigo dessa virada à direita. Ser conservador, em si, é perfeitamente válido, mas deixa de sê-lo quando a resistência aos conceitos do outro campo derrapa para a intolerância e o obscurantismo. As visões antagônicas de conservadores e progressistas se enfrentarem com o objetivo comum de promover o desenvolvimento do país e da sociedade é saudável. Colocar o posicionamento à direita a serviço de uma rejeição irracional às mudanças sociais não é.
Durante a pandemia, a negação da ciência se manifestou, disfarçada de liberdade individual, na forma de minimização do perigo e inaceitáveis campanhas antivacina. O pretexto de levar o progresso a áreas atrasadas serviu para “passar a boiada” sobre os marcos regulatórios e leis de preservação da Amazônia. Os dois ex-ministros de Bolsonaro responsáveis por essas aberrações, Eduardo Pazuello, da Saúde, e Ricardo Salles, do Meio Ambiente, se elegeram deputados federais e levam sua postura nociva para o Congresso. “O que vemos agora no Brasil está mais para reacionarismo do que para conservadorismo, um movimento de transformação estrutural que invalida avanços da democracia e glorifica o passado”, diz o cientista político Pedro Castelo Branco, professor da UERJ.
A identificação da população brasileira com a direita mais do que triplicou entre 2010 e 2020, segundo o Latinobarômetro, pesquisa anual de opinião pública realizada em dezoito países da América Latina. No mesmo período, a afinidade dos eleitores com partidos liberais, cristãos e nacionalistas se ampliou mais de cinco vezes. Em pesquisa recente do Datafolha, um terço dos brasileiros declara-se de direita. Mas a realidade das urnas mostra que a corrente conservadora arrasta uma legião de direitistas enrustidos. “Há uma vergonha no brasileiro em se dizer de direita, palavra vinculada à ditadura e ao autoritarismo, e as pessoas acabam se definindo de centro”, afirma o cientista político Guilherme Casarões.
No governo Bolsonaro, lamentavelmente, o ímpeto conservador muitas vezes resvalou para o extremismo. O primeiro-ministro britânico Winston Churchill, um leão conservador que colocava a democracia acima de tudo e ajudou a livrar o mundo do totalitarismo ao enfrentar Hitler na II Guerra Mundial, tinha os olhos bem abertos para os perigos da radicalização ao proclamar: “Fanático é aquele que não consegue mudar de opinião e não aceita mudar de assunto”. Tomara que o legítimo Brasil conservador consiga se livrar da armadilha dos exageros, buscando sempre a sensatez.
Damares Alves
Senadora (Republicanos-DF)
714 562 votos
Posição: como ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, martelou uma pauta de costumes antiaborto, contra o casamento gay e a legalização das drogas — bandeiras que pretende agitar no Congresso.
Eduardo Pazuello
Deputado Federal (PL-RJ)
205 324 votos
Posição: o ex-ministro da Saúde deu as costas à ciência quando a pandemia revelava sua face mortal, minimizando os efeitos da vacina, que custou a comprar, e defendendo o inócuo “tratamento precoce”.
Ricardo Salles
Deputado Federal (PL-SP)
640 918 votos
Posição: o ex-ministro bateu na tecla de menos regras e mais flexibilização na área ambiental enquanto, sob sua gestão, o desmatamento na Amazônia registrava o maior índice em uma década.
Nikolas Ferreira
Deputado Federal (PL-MG)
1,5 milhão de votos
Posição: o influencer, de 26 anos, o mais votado no país para a Câmara Federal, diz que antagonizar com a esquerda é sua “guerra genuína” e acredita que cristianismo e política devem caminhar juntos.
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