No mundo inteiro, o Unicef (braço da ONU para a infância) estima que 1,5 bilhão de crianças tenham sido afetadas pela interrupção no ensino presencial.
No Brasil, houve agravantes: as escolas ficaram fechadas há mais tempo do que grande parte do mundo, segundo levantamento de setembro da OCDE, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, e cresce a desigualdade entre os alunos que conseguiram manter seu vínculo com a escola e os que correm, agora, o risco de ficarem ainda mais para trás ou abandonarem os estudos.
Duas pesquisas reforçam as preocupações, justamente em um momento de alta de casos de covid-19 que torna ainda mais desafiadora a reabertura segura das escolas.
No início de dezembro, pesquisa do Ibope para o Unicef com 1,5 mil famílias brasileiras apontou que, na média geral, apenas 3% dos entrevistados disseram que algum de seus filhos já haviam voltado para alguma atividade presencial na escola.
Mas essa média oculta uma diferença entre as camadas sociais: no subgrupo que ganha mais de cinco salários mínimos, o índice de crianças frequentando atividades presenciais subia para 22%.
E quando o Datafolha entrevistou, em setembro, pais e responsáveis por mais de 1 mil crianças brasileiras, 30% deles afirmaram ter medo de que seu filho acabasse desistindo da escola por não acompanhar as aulas remotas, fazendo com que a evasão escolar seja uma das maiores preocupações de escolas públicas em 2021.
Ao mesmo tempo, especialistas e mesmo educadores e alunos rejeitam a ideia de que 2020 tenha sido perdido: foi um ano também em que professores e famílias abraçaram a tecnologia, romperam barreiras de ensino e descobriram novas formas de interagir e de ensinar.
A mesma pesquisa do Datafolha aponta que pais estão participando mais da vida escolar dos filhos, e 71% deles passaram a valorizar mais o trabalho árduo de seus professores.
Outro avanço significativo para a educação vem de Brasília: em 17 de dezembro, depois de um ano de discussões e muitas idas e vindas no projeto, a Câmara dos Deputados aprovou a regulamentação do Fundeb, fundo de dinheiro estatal que financia a maior parte da educação básica brasileira e que foi sancionado no Natal pelo presidente Jair Bolsonaro.
Uma grande mudança do Fundeb, que passa a ser permanente, é que o governo federal precisará aumentar progressivamente seus repasses ao fundo, de 12% do total dele até 23% no ano de 2026. Com isso, Estados e municípios mais pobres esperam contar com mais recursos federais para suas escolas.
“O texto final (do Fundeb) fortalece a escola pública e é mais um passo decisivo para a garantia da educação pública, gratuita e de qualidade no país”, comemorou em nota a ONG Campanha Nacional Pelo Direito à Educação.
Diante de um ano letivo cujos efeitos serão sentidos por décadas na educação brasileira, a BBC News Brasil conversou com educadores, alunos e especialistas do setor para saber: o que foi perdido e o que foi ganho na educação em 2020?
‘Meus alunos desistiram de estudar’
No Dia do Professor, que foi comemorado em 15 de outubro, Luciana Viegas não se surpreendeu por ter recebido apenas “uma ou duas mensagens de parabéns”, em vez das dezenas que ganharia em anos menos turbulentos.
Professora de língua portuguesa e projeto de vida de ensino fundamental 2 (6ª à 9ª série) na rede estadual de São Paulo, Viegas foi perdendo contato com muitos alunos e suas famílias com o passar dos meses.
“O que tivemos foi a desistência: os alunos e as famílias desistiram de estudar”, conta à BBC News Brasil.
Mesmo com oferta, pelo governo do Estado, de plano de dados de internet e de aulas em diferentes mídias, “a gente vê a desigualdade social gritando na nossa cara. Tenho alunos convivendo com agressores em casa. Ou com parentes que acham que o ensino não é tão importante. (…) Ou são crianças que precisam ir para a rua vender bala no farol. A gente (professores) está se reinventando todos os dias, mas fica de mãos atadas. A criança que tem que escolher entre trabalhar e estudar não vai estudar”, lamenta Viegas.
O Brasil já era um dos países mais desiguais do mundo em educação no pré-pandemia e viu sua “crise de aprendizagem” crescer, aponta Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais (Ceipe-FGV).
“Uma coisa é (fazer quarentena em) uma casa com livros, com conectividade e com cômodos adequados. Outra é em casas com todos amontoados. Pais de classe média puderam trabalhar de casa, enquanto outros tiveram que ir à luta. E é muito desafiador para as crianças aprenderem sem a presença de adultos. Vimos um aprofundamento da nossa crise”, avalia.
“As crianças também estão sob mais riscos de exploração sexual, trabalho infantil e sem a rede de proteção social da infância que é a escola.”
Menor renda futura para crianças, menor PIB para o país
Os impactos disso irão muito além de 2020, aponta Costin.
“Vamos pagar um preço enorme, do ponto de vista econômico dessas crianças no futuro. (…) Temo até que a incipiente inclusão (de alunos mais desfavorecidos) no ensino superior vá se perder. Muitos alunos não querem retomar os estudos e não se sentem preparados para o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio, marcado para 17 e 24 de janeiro de 2021).”
Em todo o mundo, pesquisas coletadas em setembro pela OCDE apontam que alunos nos primeiros 12 anos de vida escolar afetados pelo fechamento das escolas “podem acabar tendo renda 3% menor durante suas vidas inteiras”.
Para os países, o efeito de longo prazo pode ser de um PIB anual 1,5% menor ao longo do século, diz o mesmo estudo. “Essas perdas podem aumentar se as escolas não conseguirem reabrir rapidamente”, afirma a OCDE. “E as perdas vão ser sentidas mais profundamente pelos estudantes mais desfavorecidos. Tudo indica que estudantes cujas famílias estão menos aptas a apoiar o ensino fora da escola vão ter perdas de aprendizado maior, que vão se traduzir em perdas de renda mais profundas ao longo da vida.”
“O longo tempo de fechamento de escolas e o isolamento social têm impactado profundamente a aprendizagem, a saúde mental e a proteção de crianças e adolescentes”, afirmou o Unicef em comunicado recente, pedindo esforço de governantes pela readequação urgente das escolas.
No Rio de Janeiro, o estudante Matheus Lopes de Oliveira, 18, tenta desafiar esses prognósticos negativos.
Matheus ficou o ano letivo inteiro sem conseguir se conectar ao aplicativo da rede estadual de ensino — portanto, não teve acesso às aulas online. Fez seus estudos por conta própria, apenas com as apostilas escolares. E conciliou tudo isso com os cuidados com os pais, quando estes adoeceram, com seu emprego em uma padaria e com o voluntariado em uma ONG local.
“Tenho tanta coisa na cabeça que quando ia ler de novo um texto, já tinha esquecido sobre o que era”, conta.
Seu sonho é estudar confeitaria e seguir carreira nessa área. Mas ele ainda não sabe se conseguirá passar para o 3° ano do ensino médio, nem tem certeza se se sente preparado para isso.
“Não pensei em desistir, sempre quis estudar. Se for para o 3°ano, vou correr atrás e fazer os trabalhos do 2° ano de novo. Se fizer o segundo ano de novo, vou adorar (para conseguir aprender).”
Assim como no caso de Matheus, o ano letivo de 2021 é uma incógnita para muitos estudantes. Em dezembro, o Ministério da Educação (MEC) homologou um parecer do Conselho Nacional de Educação que permitia a fusão do ano letivo de 2020 com o de 21, além de recomendar a flexibilização na avaliação dos alunos e a continuidade do ensino não presencial até o final do ano que vem. Caberá às redes e sistemas de ensino locais planejar seu calendário com base nas diretrizes. A volta às atividades presenciais deverá, segundo o parecer, ocorrer gradualmente, “em conformidade com os protocolos das autoridades sanitárias locais” a depender do avanço ou recuo da pandemia.
De modo geral, porém, a avaliação de diversos especialistas em educação é de que o ministério foi ausente de seu papel de articulação e promoção de políticas públicas durante o período de pandemia, deixando Estados e municípios por conta própria para lidar com os desafios do ensino online e da readequação das escolas.
“Foram tempos de grande descoordenação no meio de uma crise”, avalia Claudia Costin. “Inicialmente (no governo Bolsonaro), o ministério estava mais preocupado com a guerra ideológica do que com a coordenação geral da educação. (Durante a pandemia), em vários países, o governo federal teve papel muito importante em coordenar aulas online.”
Os ganhos em um ano difícil
Em contrapartida, o esforço individual de redes, escolas, professores e famílias fez a diferença na vida de muitos alunos.
Em Manaus, uma das cidades mais atingidas no início da pandemia no Brasil, a escola municipal Waldir Garcia, que abriga 227 crianças no ensino fundamental 1 (1ª à 5ª série), viu que os desafios da aula remota iam muito além da conectividade.
“Nas casas de 27 alunos não havia nem televisão, nem celular nem internet, e eles estavam passando fome”, conta à BBC News Brasil Lúcia Santos, diretora da escola.
“Algo que era invisível se tornou visível. Até então, a gente achava que conhecia os alunos. (Com a pandemia), muitos pais ficaram sem emprego, sem ter o que comer e sem ter onde deixar os filhos. (…) Vimos que o mais importante naquele momento não era o conteúdo, mas saciar a fome e manter o vínculo com a escola.”
A equipe do Waldir Garcia fez uma vaquinha online e conseguiu dinheiro para comprar cestas básicas e aparelhos para as famílias mais carentes.
Depois, buscou novas maneiras de alfabetizar as crianças mesmo à distância, com a ajuda dos pais (leia a história completa da iniciativa da Waldir Garcia nesta reportagem).
Ao fim do ano letivo, das 40 crianças de primeira série da escola, Lúcia Santos diz que 37 estão concluindo o ano letivo sabendo ler e escrever, apesar dos percalços.
São exemplos como esse que fazem a especialista Pilar Lacerda discordar de que 2020 tenha sido um ano perdido na educação, apesar de tantos reveses.
“Aconteceram vários movimentos importantes na educação: o uso da tecnologia e as ações de milhares de escolas para para garantir o vínculo e a continuidade dos estudos”, diz Lacerda, que é diretora da fundação educacional SM no Brasil e ex-secretária de Educação Básica do MEC.
“Isso nos faz refletir sobre como a escola em geral está defasada e que não podemos simplesmente voltar ao que era antes (da pandemia). A escola precisa refletir sobre o tipo de aprendizagem — só decorar fórmulas não dialoga mais com esta geração (de crianças)”, diz.
A fundação SM e outras entidades são parte de uma campanha chamada #Reviravolta na Escola, para “apoiar redes, escolas e territórios a repensarem suas formas de atuação” no novo ano letivo — além das novas demandas sanitárias básicas, as sugestões passam por criar uma gestão mais democrática da escola, cuidar do aspecto emocional da comunidade escolar e ocupar novos espaços de aprendizagem, por exemplo.
“Enquanto a vacina não estiver universalizada, não poderá haver 30 alunos na mesma sala. Se a escola pensar na educação integral, usará seu território: terá 10 alunos estudando no jardim, dez na sala de aula e dez na cantina aprendendo química enquanto fazem um bolo”, diz.
“Ainda temos escolas sem papel toalha, sem sabonete, sem janelas. E são voltadas para dentro, sem dialogar com o mundo lá fora. A escola pode e deve ser diferente. Mesmo com o vírus controlado, não precisamos voltar ao ensino de antes, porque não estava funcionando.”
Para Costin, o aprendizado acumulado pelos professores neste ano também tende a ter um impacto positivo no futuro.
“Os professores se reinventaram e se engajaram, até mesmo como apresentadores. Vamos construir um aprendizado em cima disso”, opina.
“O saldo é que eles se redescobriram profissionalmente. Porque, quando a gente fala de professor, costuma ser com aquela mensagem de vítima, de modo que eles não se sentem legitimados para falar de suas boas práticas. Neste ano, tivemos essa descoberta de potencial. Ver os professores se reinventarem assim vai ser uma lição muito importante para os alunos.”