Um ex-governador tentando a reeleição: por mais paradoxal que soe a expressão, é esse o cenário singular que vive o Rio Grande do Sul. A inusitada situação se materializou segundo matéria da revista Veja, graças ao comportamento errático de Eduardo Leite (PSDB), eleito para comandar o estado em 2018 e mandatário do Palácio Piratini até 31 de março último, quando renunciou. A abdicação ao posto era necessária porque ele ambicionava disputar a Presidência da República, apesar de ter perdido as prévias do partido para João Doria. Para concorrer a um cargo diferente do que ocupa, qualquer político, pela lei, precisa se desincompatibilizar da função seis meses antes da votação. Fracassado o plano de uma candidatura nacional, no entanto, ele se declarou postulante ao governo apenas 74 dias após ter renunciado ao mesmo. A volta ao páreo nessa condição — sem o cargo e depois de fracassar ao tentar um voo mais alto — complica a busca por novo mandato em um estado que nunca reelegeu nenhum governador.
De início, a reviravolta já produziu um vexame. O vice de Leite, Ranolfo Vieira Júnior, que era o candidato do PSDB ao governo, agora não poderá disputar mais cargo nenhum — como não renunciou no prazo legal, o único posto que ele pode almejar é o que ocupa, o de governador, posição que teve de ceder a Leite. Ou seja, Ranolfo era vice-governador, virou governador, foi lançado pré-candidato a um novo mandato e agora, eleitoralmente, não é mais nada. A troca de candidato do PSDB, no entanto, melhorou a situação do partido no páreo. Ranolfo tinha 7%, segundo pesquisa Real Time Big Data de maio, contra 23% do líder, o ex-ministro Onyx Lorenzoni (PL). Já Leite entra na disputa com 23%, enquanto Onyx recua para 20%. Embora o desempenho de Leite seja melhor, os números mostram que obter um segundo mandato está longe de ser uma missão fácil para o tucano.
A largada eleitoral também não foi promissora. Leite ficou bastante desgastado quando veio à tona que ele, com apenas 37 anos, recebia uma aposentadoria de 19 600 reais mensais como ex-governador. A ironia é que o tucano usufruía um benefício que havia sido extinto em 2021 por lei que ele próprio havia sancionado (mas que valeria apenas para os futuros governantes). Embora tivesse justificativa legal para receber o valor, a repercussão negativa junto à opinião pública e uma ação apresentada à Justiça pelo partido Novo fizeram Leite abrir mão da pensão, segundo ele porque o caso havia virado tema de um “ataque eleitoral”. Mesmo assim, ao somente ter recusado o valor a partir do momento em que o episódio ganhou ares de escândalo, Leite deu munição à oposição. “O eleitorado gaúcho é exigente, vê o que não cumprimos e saberá responder a cada atitude”, afirma Carlos Gomes, presidente do Republicanos-RS, um dos partidos que apoiam Onyx. Também não ajudou Leite neste início de campanha ter de ficar explicando como ele era contra a reeleição, mas de repente achou que tudo bem tentar um novo mandato. Ele alega que o seu caso é diferente porque não vai usar a máquina pública em seu benefício — o que também é questionável, já que o PSDB continua à frente do governo.
Se ajudou a confundir o cenário local, a guinada de Leite também contribuiu para tumultuar aquela que é talvez a mais tumultuada saga da eleição: a discussão sobre uma terceira via presidencial. A expectativa das lideranças nacionais dos dois partidos era que o MDB gaúcho apoiasse Leite ao governo enquanto o PSDB nacional embarcaria na candidatura da senadora Simone Tebet (MDB) ao Palácio do Planalto, provavelmente com um tucano como vice — o mais cotado é o senador Tasso Jereissati. Mas o MDB gaúcho já tem um candidato ao governo, o deputado estadual Gabriel Souza, e não pretende abrir mão dele. Souza, aliás, contava com o apoio dos tucanos, já que foi líder de Leite na Assembleia. “Toda a construção da nossa candidatura foi com esse intuito. Cumprimos nossa parte, mas as alterações que vieram no caminho atrapalharam”, afirma Fábio Branco, presidente do MDB no estado.
As “alterações”, como Branco chama a volta de Leite à disputa, fizeram com que o presidente do PSDB local, deputado federal Lucas Redecker, apresentasse no dia 23 um convite oficial aos emedebistas para integrar a chapa do tucano, com Souza como vice. A pressão pela aliança foi reforçada seis dias depois, quando a executiva nacional do MDB deliberou, por unanimidade, que o partido deveria integrar a coligação encabeçada pelo tucano. Mas a cúpula gaúcha do partido reluta em aceitar. Em resposta à decisão, Fábio Branco reafirmou a candidatura própria e disse que a decisão sobre a chapa caberá ao MDB gaúcho, sem aceitar uma imposição de cima para baixo. O cacique local afirma que o assunto ainda não foi discutido internamente com a delicadeza necessária, mas que a decisão deve sair antes das convenções partidárias, marcadas para o fim de julho. A candidatura de Souza, que tem viajado pelo estado, resiste no peso histórico da legenda, que sempre teve candidato próprio e já comandou o Executivo gaúcho quatro vezes. Souza é bancado inclusive por nomes como os do ex-governadores Pedro Simon e José Ivo Sartori e o ex-prefeito de Porto Alegre Sebastião Melo.
A animosidade entre o MDB e o PSDB não pode sair do controle porque o estado deveria ser a chave para a eleição nacional. O Rio Grande do Sul foi apontado pelo presidente tucano, Bruno Araújo, como o local onde o partido de Simone Tebet deveria apoiar seu partido em troca do endosso à candidatura nacional emedebista (caso a aliança no Sul não aconteça, será mais um erro de Araújo em sua presidência). Em outros estados onde os dois não estão juntos e o MDB é coadjuvante, a ideia é que Tebet suba no palanque do PSDB — como em Pernambuco, onde a senadora deve apoiar Raquel Lyra (PSDB), mesmo com o MDB local integrando a chapa de Danilo Cabral (PSB). Entre os interlocutores de Tebet, ainda há a confiança de que o desencontro no Sul não terá um impacto negativo na aliança nacional.
Prova disso é que a senadora viajou no domingo 26 para Aracaju, onde participou de eventos do pré-candidato tucano ao governo de Sergipe, Alessandro Vieira. Além disso, Tasso encontrou-se com a senadora num jantar com políticos e empresários em São Paulo, na segunda 27, oferecido por Teresa Bracher, ex-mulher do presidente do Itaú, Candido Bracher — outro sinal de que a aliança, ao menos por ora, segue de pé. Do lado tucano, o discurso em Brasília é o de que a chapa presidencial está consolidada, com poucas arestas a ser aparadas — e poucos votos, não custa lembrar. O próprio Eduardo Leite, porém, se mostra cauteloso. “Se não acontecer a aliança entre PSDB e MDB no Sul, isso revela uma fragilidade na composição nacional”, diz. Segundo ele, os dois partidos precisam admitir que talvez não seja possível superar a polarização na eleição presidencial e que as siglas precisam ter “pilares de sustentação de um contraponto qualificado nos estados”. Ou seja: conquistar governos locais.
Enquanto o centro político gaúcho vive a ameaça de racha, o bolsonarismo também marcha dividido, com duas candidaturas — a de Onyx e a do senador Luis Carlos Heinze (PP), que tem 6% na pesquisa. Aliás, em todo o espectro ideológico, a fragmentação parece ser a tônica desta disputa. Na esquerda, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva se esforça para unificar as candidaturas do deputado estadual Edegar Pretto (PT), do ex-deputado federal Beto Albuquerque (PSB) e do vereador Pedro Ruas (PSOL). Somados, os três têm 19% dos votos, o bastante para ameaçar tirar do segundo turno tanto o centro quanto o bolsonarismo.
De volta ao páreo, Eduardo Leite também tem os seus trunfos para conseguir uma reeleição inédita no Rio Grande do Sul, principalmente relacionados à boa gestão fiscal de um estado com péssimo histórico nesse quesito. Ele deixou o Executivo com as contas no azul pela primeira vez desde 2009, focando os seus esforços em privatizações e num programa de austeridade fiscal. Quando saiu do governo, tinha 46% de aprovação. São ativos consideráveis que talvez possam compensar uma errática largada.
“Sou contra a reeleição”
Embora dispute a própria sucessão, Eduardo Leite avalia que a sua renúncia evita a contaminação da gestão pelos interesses eleitorais.
Ao deixar o governo, o seu plano A era se candidatar ao mesmo cargo? Era estar disponível para onde eu pudesse contribuir. Não era sobre ser candidato à Presidência, era ter condições, pela lei eleitoral, de participar do debate. Sou contra a reeleição pela interferência que a campanha tem no mandato. Como eu renunciei, não há risco de contaminar o governo com interesses eleitorais.
A campanha começou mal, com o senhor sendo criticado por ganhar uma pensão de 20 000 reais mensais como ex-governador. Recebi o que a lei determinava. Nos primeiros meses não fui criticado, mas virou ataque eleitoral a partir do momento em que me tornei pré-candidato. Preferi abrir mão do valor para evitar narrativas mentirosas.
As dificuldades da terceira via vão afetar a sua campanha? Tenho uma vantagem no estado, que é já ser conhecido. A eleição nacional está com uma polarização difícil de ser rompida, mas há espaço. Os votos no Lula significam mais uma tolerância a ele para tirar Bolsonaro do que uma aceitação. Caberá a quem representa alternativa ter a capacidade de sensibilizar esse eleitor. Simone Tebet (MDB) é qualificada, assim como Ciro Gomes (PDT), Luciano Bivar (União)…
Publicado em VEJA de 6 de julho de 2022, edição nº 2796