Enquanto a força do consumo das famílias brasileiras em 2024 tem surpreendido mesmo os analistas mais otimistas, economistas buscam entender o que pesa mais para o fenômeno, se o crescimento da renda, diante de um mercado de trabalho apertado, ou um efeito de despoupança das famílias. A origem do movimento importa segundo Anaïs Fernandes, do jornal Valor.
— porque, a depender, há desdobramentos para a inflação à frente e, consequentemente, para a política monetária, em um momento em que o Banco Central já não vê espaço para seguir cortando juros.
A expectativa mediana dos agentes do mercado para o crescimento do consumo das famílias em 2024 aumentou quase um ponto percentual desde o início do ano, de 1,9% em janeiro para 2,8% na última pesquisa Focus, do BC. A própria autoridade monetária tem, agora, uma estimativa superior a essa mediana.
No Relatório de Inflação (RI) do segundo trimestre, divulgado no fim de junho, o BC atualizou sua projeção para crescimento do consumo das famílias neste ano de 2,3% para 3,5%, notando que passou a esperar que ele suba mais do que em 2023, quando avançou 3,1%, “mesmo com a redução do ritmo de expansão dos benefícios sociais”, diz o BC no relatório.
“Tem taxa de poupança e estoque de ativos financeiros das famílias elevados, espaço para aumento de gastos [das famílias] e um mercado de trabalho muito aquecido, com salários subindo”, afirma Bruno Martins, economista do BTG Pactual. “É uma perspectiva desafiadora para o BC”, diz, projetando alta de 4% para o consumo das famílias no PIB deste ano.
Os indicadores do banco não indicam, segundo Martins, que houve despoupança das famílias neste ano. “O indicador de poupança continuou subindo. Inclusive, atingiu o maior valor da série, excluindo o período da covid-19, de muita expansão fiscal”, diz.
Sem contar o período da pandemia, que tornou a avaliação mais difícil, observa Martins, o pico do indicador de taxa de poupança das famílias elaborado pelo BTG foi de 9,4% em 2017, na média móvel de quatro trimestres; em março deste ano, bateu 9,6%.
“Apesar do crescimento do consumo das famílias de 1,5% no PIB do primeiro trimestre, o crescimento da massa salarial, da renda disponível das famílias foi ainda maior. Acho que esse crescimento do consumo das famílias é totalmente explicado pelo crescimento da renda”, afirma.
Fernando Montero, economista-chefe da corretora Tullet Prebon, destaca que o consumo das famílias subiu 4,4% no primeiro trimestre deste ano na comparação com o mesmo período de 2023, acima do PIB, que cresceu 2,46%. Com isso, diz, o consumo das famílias escalou de 63,2% do PIB nos três primeiro meses de 2023 para 64,9% em 2024. Nesse mesmo intervalo, a poupança bruta na economia como um todo perdeu 1,3 ponto percentual, de 17,5% do PIB no primeiro trimestre de 2023 para 16,2% em 2024.
Contrariando o que poderia depreender-se disso, afirma Montero, as famílias nunca consumiram tão pouco e/ou pouparam tanto de sua renda disponível quanto nesta entrada de ano. Em 2024, o consumo das famílias como porcentagem da Renda Nacional Disponível Bruta das Famílias (RNDBF), calculada pelo BC, em um primeiro trimestre foi o mais baixo da série, iniciada em 2003, nota Montero. A RNDBF considera salários, benefícios previdenciários, transferências de programas sociais e outras fontes, como aluguéis e aplicações financeiras.
No primeiro trimestre de 2024, o consumo das famílias representava pouco mais de 90% de sua renda bruta disponível, indica a Tullet. No mesmo período de 2023, essa porcentagem encostava em 93% e, em 2022, em 95%. No ápice da série, superou 96% em 2008, e, no ponto mais baixo até 2024, ficou um pouco acima de 91% em 2009.
“A explicação está na renda recorde das famílias vindo das transferências e gastos líquidos do setor público, que é o real despoupador no sistema”, escreve Montero em relatório.
Armando Castelar, pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia (FGV Ibre), concorda que o governo é um “despoupador clássico”. Mas ele diz também que o fato de a renda disponível bruta das famílias ter registrado queda entre o primeiro trimestre de 2024 e o último de 2023 sugere que o crescimento do consumo no PIB no período pode ter ocorrido às custas de uma queda da poupança das famílias, na esteira de uma melhora das condições de crédito.
A ideia da política monetária com a Selic elevada é colocar um freio”
— Armando Castelar
A renda disponível bruta das famílias somava R$ 682,1 bilhões na média móvel trimestral até dezembro de 2023, em valores constantes, corrigidos pelo IPCA e com ajuste sazonal, observa Castelar. Em março deste ano, esse valor estava em R$ 680,16 bilhões. “Se a renda não aumenta, para continuar consumindo, a pessoa pode tirar o dinheiro da poupança, se tiver, ou pegar dinheiro emprestado. Olhando o macro, é a soma das coisas. O crédito ajuda a explicar a despoupança. Obviamente, a contrapartida disso é uma piora no balanço das famílias”, diz Castelar.
Montero pondera que a renda bruta das famílias cedeu 0,28% no primeiro trimestre de 2024, ante o quarto trimestre de 2023, mas após disparar 3,93% no fim do ano passado, já que o pagamento do estoque de precatórios precisava ser contabilizado até o fim de dezembro para não contaminar o resultado primário de 2024.
Martins, do BTG, observa que outro indicador do banco, que mede o estoque de ativos financeiros nos balanços das famílias, também continua em patamar alto, o que, segundo ele, “conversa com a ideia de que não houve despoupança, mas, de fato, um crescimento muito forte da massa salarial”.
O crescimento da poupança agora impõe um risco maior para a inflação à frente, alerta Martins. “Se, em algum momento, essa taxa de poupança começar a cair, ou seja, se de fato acontecer despoupança, pode ter uma pressão ainda maior de demanda e isso pode afetar indicadores de inflação.”
Montero, da Tullet, diz que, a princípio, achava que a renda das famílias no trimestre até maio – dado que ainda não foi divulgado pelo BC – poderia ceder, conforme saísse da conta o fluxo de precatórios antecipados em fevereiro.
Os dados fortes do IBGE para o mercado de trabalho e os gastos do governo no período, no entanto, trazem dúvidas para essa perspectiva. A massa de rendimentos habituais reais no trimestre até maio avançou 9% no último ano, enquanto a despesa primária do governo federal acumula alta de 13% real este ano, cita Montero. “São valores fortes, sobre bases elevadas, somando pedaços enormes do PIB e ocorrendo em paralelo.”
Na avaliação de Yihao Lin, economista da Genial Investimentos, o crescimento do consumo das famílias mais forte do que o do PIB no primeiro trimestre de 2024 e a contração da taxa de poupança da economia, em relação ao mesmo período de 2023, são indícios de que houve despoupança das famílias, mas ele pondera que esse não deve ter sido o fator principal para o crescimento do consumo. “É um adicional, mas a gente tem de lembrar que teve o pagamento de precatórios, políticas fiscais como aumento do salário mínimo, maior orçamento de investimentos”, diz.
Ainda que o cenário para juros não seja tão favorável como se chegou a pensar, aponta Castelar, a tendência ainda é de maior disponibilidade de crédito às famílias, o que também tende a ajudar o consumo ao longo do ano. “A ideia toda da política monetária com a taxa Selic elevada é colocar um freio nisso, mas a dinâmica ainda deve ser de influência grande do consumo”, afirma.
Lin diz que não é 100% dos fortes ganhos salariais e do ritmo de crescimento do mercado de trabalho que se traduz em atividade. “Quando olhamos para dados de crédito e de endividamento das famílias, que têm melhorado ou, pelo menos, ficado estáveis, suspeitamos que parte desses ganhos estão sendo direcionados para o pagamento de dívidas. Essas composição de um mercado de trabalho com ganhos de renda para as famílias, que, por sua vez, estão conseguindo controlar suas dívidas, ainda é bastante benigna para o consumo, por mais que a taxa de juros esteja elevada”, afirma.