Na década de 1960, as fases dos relacionamentos eram marcadas. Namoros no sofá ocorriam na presença de familiares “segurando vela”, era o protocolo social para interessados que postergavam o sexo para após o casamento. A virgindade da mulher era trunfo do marido, garantia da paternidade, e quando violada dava direito à anulação matrimonial. A expressão “mulher honesta” separava as aptas ao casamento das mulheres de dignidade sexual não protegida. Outras formas de amar e viver eram marginais, como a família informal sob o mesmo teto, cuja sanção da lei era a não consideração de família e a ilegitimidade do filho. Ora, tempos que não deixam saudades, ditados por preconceito e discriminação. A sociedade ressignificou namoros, casamentos e uniões estáveis pelo exercício de liberdades, desapego às convenções de religião e moralidade.
A Constituição reconheceu a família pela união estável entre homem e mulher pela convivência estável, contínua e duradoura. A Lei n. 8971/94 regulou o direito ao usufruto e herança dos companheiros há mais de cinco anos. A Lei n. 9.278/96 acrescentou a presunção de condomínio sobre bens móveis e imóveis, alimentos e direito real de habitação na viuvez, caindo o prazo anterior. O Código Civil/02 previu a união estável nos art. 1723/1726, replicando a imposição do Direito Romano à heteronormatividade com a exigência de “homem e mulher”. O legislador parou nesta lei envelhecida em comparação à realidade brasileira, ignorando multiculturalidade, modos de viver e dignidades.
Em 2023, uniões estáveis informais e namoros carecem de releituras pelos próprios pares e tribunais, a fim de pontuar os efeitos delas decorrentes. A primeira releitura foi realizada pelo STF em 05/05/11, ao julgar as ADI 4277 e ADPF 132 e reconhecer a união estável entre pares de “mesmo sexo”, vitória da comunidade LGBTQIAPN+ (o casamento homoafetivo é alicerçado na Res n. 175/13 do CNJ que não é lei formal).
Outra releitura deve ser feita pelo viés sociológico. As uniões estáveis e namoros são desenhados pelas liberdades da vida particular e íntima dos autores resultando em relações fluídas, não encaixotadas no estereótipo “tradicional”, descoladas da ideia de indissolubilidade do casamento ou da necessidade dele. Muitas são ambientadas em espaços virtuais e no distanciamento geográfico. Segundo estatísticas do IBGE, o número de divórcios no Brasil atingiu recorde de 386,8 mil em 2021, a maior variação em relação ao ano anterior desde 2011. Como reflexo, observamos namorados de perfis díspares: adolescentes, pessoas idosas, solteiros, divorciados, viúvos. Aos 50, 60, 70 ou 80 anos as relações são reconstituídas após divórcios ‘grisalhos’ consumados anos após o matrimônio e no envelhecimento.
O fato é que nem todos desejam casar ou viver em união estável por motivos singulares: desacreditam, não querem coabitar, frustraram-se na relação anterior, optam pela leveza do namoro, não querem compromissos nem a higidez da ruptura. Tais namoros são diferentes daqueles da década de 60, hoje, namorados viajam, permanecem períodos na casa do outro deixando roupas e objetos. Certos namorados moram na mesma casa por razões econômicas, por exemplo, estudar ou trabalhar em outras cidades, ou evitar o distanciamento social da pandemia.
A fluidez das relações afetivas traz novo panorama. O namoro pode ser confundido com a união estável e a identificação é imprescindível a fim de não conferir direitos a quem legalmente não os possui, ou subtrair direitos de quem licitamente os detém.
Em 2015, o STJ publicou Informativo de Jurisprudência n. 557, referenciando os REsp n. 1.257.819/SP e REsp. 1.454.643/RJ para definição do propósito de constituir família na união estável. Descreveu que o propósito na união estável é abrangente devendo se afigurar durante toda a convivência desde o compartilhamento de vidas, com apoio moral e material entre os companheiros, diferenciando-o do ‘namoro qualificado’. Reafirmou que na união estável não é preciso morar no mesmo lar (coabitação) e entre namorados, a coabitação é usual nos tempos atuais, impondo-se ao Direito adequar-se à realidade.
A subjetividade e a linha tênue entre namoro e união estável estão na pauta da sociedade pós-moderna. A discussão tende a surgir no término da relação: era namoro ou união estável? Se existir animosidade, não raras vezes, a parte mente ou omite a real intenção da relação, implicando na concessão indevida ou na subtração de direitos assegurados somente aos companheiros de uniões estáveis: regime da comunhão parcial de bens, art. 1725, direito de herança, art. 1829, I, II e III, direito real de habitação, art. 1831, alimentos transitórios ou definitivos, art. 1694, pensão por morte, alimentos compensatórios (Rolf Madaleno). Em caso de questão pessoal ou patrimonial no namoro, as partes devem buscar as varas cíveis.
Para segurança jurídica indicamos contratos. O de união estável pode ser feito por instrumento particular, mas as vantagens da escritura pública são inúmeras após a Lei n. 14.382/22 e Prov. 141/2023 CNJ: prova a relação, há opção por outro regime, registro, publicidade, proteção patrimonial. De outro lado, não há previsibilidade para contrato de namoro que é negócio jurídico lícito, possível e determinado realizado por sujeitos capazes. Há vozes conservadoras a respeito da nulidade deste pacto e delas divirjo. É preconceituosa a premissa de que todo namoro seja camuflagem da união estável, isso nega a diversidade. Lembremos, toda declaração inverídica de vontade é negócio simulado nulo. Por isso, recomendamos a escritura pública de namoro já que a verificação do tabelião sobre a vontade livre e espontânea é dotada de fé pública, forte indício de prova em demandas. Desfeito o namoro, não é preciso confeccionar novo contrato.
Numa sociedade que rotula estereótipos e nega diferenças, pessoas namoram independentemente de gênero, orientação sexual, idade, e merecem a segurança jurídica de que seu amado(a) não invada, indevidamente, sua seara patrimonial familiar. Afinal, como cantou Vinicius, que seja infinito enquanto dure, pois acrescento, e não se encerre em litígio judicial.
Por Samantha Dufner – Ela é mestre em Direitos Humanos e autora do livro Famílias Multifacetadas – Direito Civil Constitucional das Famílias, publicado pela editora Revista dos Tribunais. Especialista em Direito Notarial e Registral. Advogada, consultora e parecerista com 27 anos de experiência, é coordenadora e professora na pós-graduação em Direito das Famílias e Sucessões do Proordem-GO. Professora de vários cursos de pós-graduação, preparatórios para concursos e exames de ordem. Membro do IBDFAM e pesquisadora na área de Biodireito, Biotecnologia e Bioética (CNPQ)