Especialista em planejamento energético destaca que sistema de transmissão brasileiro é robusto e descarta crise de abastecimento como causa de blecaute.Nesta semana, o Brasil inteiro, com exceção de Roraima, foi surpreendido com uma queda de energia generalizada. Em alguns estados, o fornecimento foi retomado em questão de minutos. No entanto, em localidades como no Nordeste, Norte e em Santa Catarina, os consumidores ficaram horas sem luz.
De acordo com o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, o problema foi causado por uma sobrecarga no sistema de abastecimento. Em pronunciamento, Silveira disse que vai pedir uma investigação à Polícia Federal sobre uma possível “ação humana”. Não houve mais detalhes sobre as possíveis causas do apagão.
“É necessária uma análise mais pontual do que causou esse evento dessa terça-feira. O que nos estranha é essa criticidade ter ocorrido às 8h30 da manhã, que é um horário em que não costuma ter um problema e pressão de carga dos subsistemas”, afirma Vanderlei Martins, economista e professor de planejamento energético do MBA da Fundação Getulio Vargas.
Em entrevista à DW Brasil, o especialista e doutor pela COPPE/UFRJ, corrobora com a versão do governo de que o blecaute não foi causado por uma crise energética. Segundo ele, o sistema de abastecimento energético brasileiro é robusto, mas ainda precisa se modernizar para atender as necessidades da transição energética.
DW: Ainda não se sabe exatamente o que causou o apagão. Mas o ministro de Minas e Energia, disse que vai investigar “eventual ação humana”. Estamos falando de sabotagem, erro ou qual outro tipo de intervenção na rede de energia do país?
Vanderlei Martins: Primeiro, acho que vale esclarecer que o nosso sistema de transmissão é muito robusto. Foram muitos anos de investimento para toda a operação, e o próprio apagão é um mecanismo de defesa do sistema. É uma reação do sistema para que ocorra uma devida proteção, para não tenha uma falha generalizada, e que consiga retomar mais rapidamente o fornecimento.
Outro ponto é um investimento de muitos anos em parque de geração. Hoje, há uma diversificação maior da fonte, que ocorreu nos últimos dez anos. Ou seja, não estamos falando de um evento de crise energética. Mas é necessária uma análise mais pontual do que causou esse evento dessa terça-feira. O que nos estranha é essa criticidade ter ocorrido às 8h30 da manhã, que é um horário em que não costuma ter um problema e pressão de carga dos subsistemas.
É preciso ter uma devida atenção para entender o que se desvirtuou do padrão, o que foi diferente da 8h30 da terça-feira em relação às 8h30 da manhã de outros dias. Acho que isso cabe em uma investigação.
Com relação à questão da falha, ela é inicialmente técnica, temos que saber se é natural ou humana, e isso vai ser apurado com certeza pelo Operador Nacional do Sistema (ONS) junto dos órgãos reguladores, como a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
Qual é a vulnerabilidade da rede de abastecimento elétrico do país? Como funciona essa infraestrutura? Quais os possíveis pontos fracos dela?
O primeiro ponto é que o nosso sistema está em mudança, com a introdução cada vez maior de fontes renováveis. E, para essa operação, é preciso trazer mecanismos de flexibilidade. Temos que olhar o planejamento a curto, médio e longo prazo. No curto prazo, é saber o que causou essa falha. Outro aspecto é pensar em transição energética, descarbonização e energias renováveis: quais mecanismos de flexibilização são necessários?
Por exemplo, quando acontece o apagão e a geração eólica é interrompida de forma abrupta, temos primeiro um prejuízo dessa geração para essas usinas. Imagine se tivéssemos uma solução de armazenamento de baterias, que fossem capazes de regularizar essa operação.
No momento em que tivermos maior quantidade de energia renovável, conseguimos um equilíbrio mais específico para as localidades. A palavra-chave que o Operador e governo precisam trabalhar muito é o instrumento regulatório para incentivar uma maior flexibilização.
Há também outros aspectos, como avaliação de necessidade de atualização, o retrofit, da transmissão. A linha viva é robusta e muito estável, mas para o serviço ser prestado há toda uma eletrônica de potência e outros serviços que precisam de operação, de segurança, da devida fiscalização, manutenção e verificação contínua das condições.
Na comparação com outros países, como está a situação do fornecimento energético brasileiro?
O nosso sistema, se pegarmos a linha de transmissão brasileira, equivale a todo sistema europeu pela magnitude e tamanho. É muito centralizado, tem muito apoio das hidrelétricas para fazer a flexibilização com os reservatórios. E agora estamos caminhando, como em outros países, para sistemas mais descentralizados. Tem uma disseminação de vários recursos energéticos, se aproveitando de geradoras localizadas, de recursos naturais mais locacionais. Isso tudo influencia a dinâmica e a modernização setorial, que está em andamento. O Brasil vai ser líder na transição energética.
Não posso dizer que o sistema brasileiro é pior ou melhor que outros, porque ele foi feito justamente para atender as nossas necessidades e recursos hídricos, que é a estratégia principal, e como escoar isso até os centros de carga. A mesma coisa acontece com eólica, tenho um potencial no Nordeste, preciso de transição para escoar essa energia.
Nos últimos anos, o governo agiu corretamente, com toda a estrutura que foi criada para atender o consumidor e evitar episódios como racionamento e apagão nos anos 2000 – e nunca mais vivemos algo como aquele evento.
O que é preciso fazer ainda?
Agora precisamos pensar na modernização. A pandemia mudou o padrão de consumo, houve a eletrificação de alguns usos, até mesmo dentro das residências, e temos até uma mudança no horário de pico pelo uso do ar-condicionado. Essa dinâmica toda está sempre sendo considerada pelo ONS e pelo governo na parte de planejamento, mas precisamos trazer mais essa questão da flexibilização, que está sendo tratado por outros países.
O Brasil precisa focar nisso, seja por outras tecnológicas como baterias, ou pelo lado da demanda, mapear as criticidades da rede e saber onde pode reduzir carga. E como se faz isso? Bonificando, fazendo pagamento para redução da carga em momentos críticos. É uma política bem moderna em mercados maduros como Europa e Estados Unidos. Esse tema já está em estudo pela Aneel e pelo ONS e cada vez mais vai ser preciso acelerar esse processo de forma segura para garantir tanto a defesa das redes quanto para minimizar impactos de outro eventual apagão.
O caso do apagão trouxe à tona o tema da privatização da Eletrobrás, que ocorreu em 2022. O próprio ministro de Minas e Energia disse que a desestatização da empresa “fez muito mal” ao sistema energético brasileiro. Existe relação entre o apagão dessa terça com essa mudança na Eletrobrás?
Apesar de ser uma privatização, o regime do setor elétrico é de concessão. Ou seja, o governo, de certa forma, ainda é responsável pelo acompanhamento e pela regulação do setor, porque é uma concessão pública. E o governo continua sendo acionista, mesmo não majoritário.
Antes da privatização, também havia acontecido eventos como esse. A questão não está na privatização, mas nas medidas que o governo vai adotar como foco de fiscalização dessa base de ativos para operação e manutenção. Acho que é sobre isso que o setor deve cobrar. Devemos estar atentos, porque é uma discussão totalmente importante se o serviço vai ser entregue com qualidade e segurança para o consumidor.