Insatisfeita com o PSDB, a senadora Mara Gabrilli (SP), 53, fez duras críticas ao colega de partido João Doria e disse em entrevista à reportagem da Folha de S. Paulo, que o governador desonrou um compromisso com ela ao mexer no orçamento da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).
Mara, que é tetraplégica desde os 26 anos e fez campanha ao lado de Doria em 2018, afirmou ainda que o governo paulista pratica capacitismo (discriminação de pessoas com deficiência) ao cortar a isenção de IPVA para veículos de cidadãos com dificuldades de mobilidade. “Cheguei até a fazer um PowerPoint explicativo. Se não é desconhecimento, desculpe, só pode ser crueldade”, disse a tucana.
Ela evitou colocar Doria como única opção do PSDB para a eleição presidencial de 2022 e revelou que cogita sair da sigla, por causa do desalinhamento com a direção paulista.
Recuperando-se de graves sequelas da Covid-19, doença que teve em maio, Mara concedeu a entrevista em trocas de áudio via WhatsApp. Uma das consequências do vírus foi o enfraquecimento de sua voz, que chegou a sumir e às vezes ainda falha. Ela faz acompanhamento fonoaudiológico.
Mara também teve espasmos que causaram dores pelo corpo e contraturas que enrijeceram músculos. Seu pescoço ficou paralisado, e ela ainda tem perdas de memória episódicas. Hoje concilia os tratamentos com suas atividades remotas no Senado.
Pergunta – A sra. demonstrou nos últimos anos alinhamento com Doria. Apoia a candidatura dele a presidente em 2022?
Mara Gabrilli – Olha, por conta de alguns acontecimentos recentes, eu não diria que existe esse alinhamento. Fui extremamente desrespeitada por algumas decisões e atitudes recentes dele e de secretários. Não só como senadora, mas como alguém que milita na causa da pessoa com deficiência e da ciência há mais de 25 anos.
O Doria, por governar São Paulo, é um dos naturalmente cotados. Mas temos outros nomes excelentes. Dentro do PSDB, cito o senador Tasso Jereissati [CE] e o governador Eduardo Leite [RS]. Há nomes fora do partido, como o ex-ministro [Luiz Henrique] Mandetta [DEM], e fora da política, como o apresentador Luciano Huck. O momento é de conversa em torno de uma proposta para salvar o Brasil.
A que acontecimentos se refere? Um vídeo da campanha de 2018 em que o governador promete à sra., caso eleito, ampliar os recursos da Fapesp, foi resgatado no debate sobre cortes no orçamento da instituição.
MG – O governo quebrou um compromisso que o próprio Doria tinha assumido comigo e com a comunidade científica. Esperava isso de qualquer outro, menos do governador de São Paulo. Agora, depois de muita pressão, [os representantes do governo] disseram que vão editar decretos [para abrir crédito orçamentário à Fapesp]. Se a intenção não era prejudicar, por que então colocar na lei essas brechas que ameaçam o orçamento da ciência?
O governo Doria também cortou a isenção de IPVA em 2021 de 80% das pessoas que se declaram com deficiência, algo que é da sua pauta como senadora. Como avalia?
MG – O dano que ele está causando à vida dessas famílias e à própria imagem dele é muito maior do que aquilo que supostamente será economizado sob o pretexto de combater fraudes. Cheguei a falar com o próprio João Doria, com [o vice-governador] Rodrigo Garcia, com o secretário Mauro Ricardo, com a secretária Célia Leão. Cheguei até a fazer um PowerPoint explicativo. Se não é desconhecimento, desculpe, só pode ser crueldade.
Definiram que apenas pessoas com deficiência física severa e profunda terão direito imediato à isenção. O governo está cometendo capacitismo, coisa que deveria combater. Ele está dizendo quem pode e quem não pode dirigir. Sem dúvida, a pandemia exige contenção de gastos, mas isso não pode ser feito à custa daqueles que enfrentam o maior número de impedimentos todos os dias para viver.
Diante disso, pensa em sair do PSDB?
MG – Ainda está longe de ser uma decisão tomada, mas confesso que venho pensando nisso. Tenho um bom trânsito com diversos partidos, venho mantendo conversas. O PSDB foi o primeiro e único partido ao qual me filiei. Tem quadros inteligentes e preparados, que admiro. Sou grata por todas as oportunidades que o partido me ofereceu.
Os rumos do PSDB mudaram bastante nos últimos anos e foi necessário fazer até uma autocrítica. Esse processo ainda está acontecendo. E é difícil para mim não ter esse alinhamento, por exemplo, com o PSDB paulista.
Ao ser eleita, em 2018, a sra. disse ao jornal Folha de S.Paulo que uma de suas metas seria o combate à corrupção. Avançou na pauta?
MG – Sempre tive a convicção de que o mau gerenciamento do dinheiro público é uma porta de entrada para a corrupção. Instalamos uma subcomissão para avaliar esse tema. Acho que o Senado tem contribuído muito para essa discussão. O grupo Muda, Senado, do qual faço parte, tem propostas muito boas nessa pauta, como o fim do foro privilegiado, a prisão após condenação em segunda instância.
E como avalia a questão sob o governo Jair Bolsonaro, que se elegeu com discurso anticorrupção mas acumula suspeitas?
MG – Acho que ele decepcionou muita gente que acreditou nas promessas de campanha dele. Há diversas denúncias envolvendo os filhos dele, ações de falta de transparência do governo. Prometeu uma nova política, sem toma lá, dá cá, e isso não aconteceu. A negociação de cargos continua escancarada, a liberação de recursos para parlamentares que votam com o governo também.
Defende expulsão de filiados do PSDB que são investigados, como Aécio Neves, José Serra e Geraldo Alckmin?
MG – Sou a favor da investigação, seja contra quem for. Se existe denúncia, precisa investigar. E, se a corrupção for comprovada, se houver condenação, que cumpram as penas. A expulsão do partido e a perda dos direitos políticos, a meu ver, são as penas mais leves que deveriam ter.
Seu nome aparece em listas de prováveis candidatos à presidência do Senado. Há chance?
MG – Nunca pensei, nunca foi um desejo. Não coloquei o meu nome. Ele foi cogitado por um grupo de senadores como uma possível alternativa. O que tenho defendido são propostas para um próximo candidato à presidência do Senado, principalmente em relação à independência do Congresso, e uma maior participação feminina.
Como a sra., que se coloca como defensora das minorias e dos mais vulneráveis, vê a resposta que o Estado brasileiro tem dado a esses grupos?
MG – É preciso separar. O Legislativo tem dado respostas muito significativas. A gente aprovou no Senado um projeto de lei que aumenta a pena para crimes praticados por motivos de racismo e discriminação. O Judiciário também tem dado essa resposta, com, por exemplo, a criminalização da homofobia e da transfobia. Por outro lado, não vejo essa resposta por parte do governo. Basta citar o questionamento que a AGU fez por conta da criminalização da homofobia pelo STF.
Outra bandeira que a sra. levanta, como paciente e parlamentar, é a da cânabis medicinal. Como é enfrentar o governo nesse tema?
MG – A gente está a quilômetros de distância dos países mais progressistas. Me tira o chão olhar para os olhos apavorados de uma mãe desesperada, em busca de um tratamento para um filho com convulsões diárias e dizer a ela que a única opção é a importação do óleo de CBD, que custa de mais de R$ 2.000 por mês. Quem tem dinheiro consegue, e os vulneráveis, como é que ficam? Em vez de pensar políticas públicas para facilitarem esse acesso, que pode tirar dor, salvar vidas, preservar intelecto e preservar saúde, o governo prefere brigar com a ONU e dificultar o acesso a esses medicamentos para quem precisa.
Críticos da liberação dizem que a sociedade brasileira é essencialmente conservadora e rejeita abrir essa frente.
MG – Esse argumento não se sustenta. Em 2019, uma pesquisa do instituto DataSenado solicitada por mim mostrou que a maioria dos brasileiros é a favor de que a indústria farmacêutica seja autorizada a produzir medicamentos à base de cânabis, o que iria reduzir muito o custo, e que o SUS faça distribuição gratuita desse tipo de medicamento.
Na contramão da sociedade, a gente tem alguns parlamentares que colocam suas crenças particulares acima da necessidade da população. O governo federal destila preconceito e desinformação. Precisamos fazer uma discussão científica, e não ideológica. Quando falamos em dor e doença, não deve haver espaço para preconceito.
No caso das pessoas com deficiência, que é um dos seus focos no Senado, recentemente o governo Bolsonaro editou um decreto que vai na contramão da inclusão de estudantes especiais, e depois o STF derrubou a política. O que a sra. faz para que propostas desse gênero não sejam ressuscitadas?
MG – Em quase dez anos de Congresso, mais do que apresentar propostas, meu trabalho foi combater a retirada de direitos das pessoas com deficiência. Isso é triste, porque acontece o tempo todo. Muitas vezes por desinformação, outras por ganância de algum recurso direcionado a esse segmento. E muitas vezes por pura maldade, seja por parlamentares, seja pelo próprio governo.
Essa nova política apresentada pelo governo aponta para a segregação. Quando uma escola é boa para um estudante com deficiência, ela é muito melhor ainda para todos os outros alunos. Fui a relatora e autora do texto final da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, construída com toda a sociedade e reconhecida pela comunidade internacional. O Brasil tem uma das legislações mais completas do mundo. O desafio é tirá-la do papel.
Houve conversas para que a sra. fosse candidata a vice de Bruno Covas (PSDB) em São Paulo, como se cogitou?
MG – Meu nome foi ventilado pela imprensa e por alguns integrantes do partido, mas nunca houve conversa nesse sentido comigo. Fui eleita membro do Comitê da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, com mandato até 2022, e sou senadora até 2023. Para ser vice-prefeita, teria que abrir mão de ambos, coisa que nunca passou pela minha cabeça.
Como está seu tratamento das sequelas da Covid?
MG – O meu pós-Covid foi pior que a Covid. Não tive sintomas devastadores na fase inicial porque o meu pulmão não foi afetado, talvez pelo fato de já fazer muito exercício respiratório. Tive espasmos musculares, contrações que me jogavam da cadeira. E dores.
Tive um rompimento do ligamento dos ombros e contraturas musculares que até hoje estou tentando dissolver. Meu pescoço ficou duro. Eu só conseguia olhar para lá e para cá só com os movimentos dos olhos. Ainda estou fazendo tratamento para tudo isso. Mas estou aqui, viva.
RAIO-X
Mara Gabrilli, 53
Psicóloga e publicitária, é filiada ao PSDB desde 2004. Foi secretária municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida (2005-2006), vereadora na capital paulista (2007-2010) e deputada federal (2011-2018). É senadora (2019-2026) e representante do Brasil no Comitê da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Ficou tetraplégica em 1994, após um acidente de carro.