Um mês após o início da tragédia no Rio Grande do Sul, que já deixou 172 mortos e mais de 2,3 milhões desalojados, o clima de consternação cede espaço para a revolta. São cada vez mais frequentes protestos nas cidades gaúchas afetadas pelos alagamentos, como o recente despejo de água na BR-290 por moradores de Porto Alegre e o ataque a ovos ao prédio da Câmara de Vereadores de Canoas.
Segundo especialistas, a escalada dos protestos faz parte do processo de reação popular a tragédias ambientais e a busca por soluções rápidas para os danos causados. É possível identificar movimento semelhante em outros episódios.
— Em um primeiro momento, é criada uma rede de solidariedade. Quando há o prolongamento da tragédia, cria-se um novo ambiente. Há uma tomada de consciência de que o evento poderia ter sido prevenido e evitado, que gera a revolta e indignação — afirma o professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio Bernardo Conde.
Em Canoas, moradores que ficaram desalojados bloquearam a BR-116 há duas semanas. A manifestação pedia mais agilidade da prefeitura em soluções para a retomada das moradias. Em Porto Alegre, moradores dos bairros Vila Farrapos e Humaitá retiraram água de suas casas com baldes e a despejaram na BR-290 na semana passada. Após o ato, o Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE) iniciou a instalação de uma bomba de água para drenar uma das regiões.
Constante no país
Vítimas de outras tragédias pelo país também recorreram às manifestações em busca de soluções para a falta de moradia e de reparações na infraestrutura das áreas atingidas. Em Niterói, na Região Metropolitana do Rio, após 48 pessoas morrerem em um deslizamento no Morro do Bumba, em 2010, sobreviventes organizaram passeatas por moradias dignas.
Após a tragédia na Região Serrana do Rio, que em 2011 foi atingida por fortes chuvas, os protestos foram constantes. Além de atos para homenagear as vítimas, as mobilizações pediam o pagamento de aluguel social e reconstrução de estradas. Em Brumadinho (MG), um mês após o rompimento da Mina Córrego do Feijão, da mineradora Vale, familiares de vítimas começaram um movimento em busca de respostas para a tragédia ambiental que tinha causado 270 mortes. Dois meses depois, a psicóloga Kenya Lamounier, que perdeu o marido, uniu-se ao grupo no que depois se tornaria a Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem Mina Córrego do Feijão-Brumadinho (Avabrum). Ela explica que a busca por justiça surge após um momento inicial de luto.
— Quando percebemos que a tragédia tinha sido também um crime, vimos a necessidade do coletivo. Se não tiver união, os atingidos começam a se perder e se afogar no mar de desesperança — diz Kenya, que torce para a formação de associações gaúchas.
Repercussão eleitoral
A psicóloga Cristiane Assumpção, especialista em luto, acrescenta que as vítimas precisam de um tempo para assimilar os sentimentos gerados pelo trauma.
— Situações de protesto representam o momento em que a pessoa se confronta com a realidade do desastre. Ela vai buscar respostas.
A indignação diante da tragédia pode ainda ter reflexo nas urnas. Um estudo que reuniu pesquisadores da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em 2020, avaliou o impacto de desastres em eleições locais. O foco foi o histórico de votos no estado do Rio, que concentrou 66% das mortes por inundações, enchentes e alagamentos entre 2000 e 2014. Os dados mostraram relação entre a ocorrência das tragédias climáticas e a votação menor para o prefeito em cidades atingidas.
— Os prefeitos são mais punidos nas seções eleitorais afetadas pelas tragédias — diz André Albuquerque Sant’Anna, economista e professor colaborador da UFF, um dos autores do estudo.
A pesquisa aponta que um episódio de chuva intensa (acima de 100 mm por dia) pode indicar a redução de 1,8 a 3 pontos percentuais no voto do prefeito que está no cargo. No caso das chuvas da Região Serrana do Rio em 2011, por exemplo, em duas das três cidades mais atingidas, Teresópolis e Petrópolis, houve mudança no grupo político que comandava a prefeitura nas eleições de 2012.
O antropólogo Renato Pereira, especialista em marketing político, pontua, no entanto, que há casos em que a tragédia ambiental pode trazer capital político para o gestor municipal. Ele explica que um dos principais indicativos será a atitude político no momento do incidente climático, que precisa ser “atuante, empático, demonstrar ter um plano para a saída da crise e não culpar terceiros”.