À medida que as eleições se aproximam, o ninho tucano, que abriga muitos nomes de peso, sempre fica alvoroçado com as bicadas entre potenciais presidenciáveis. O que se vê agora, no entanto conforme matéria da revista Veja, é uma disputa com um grau inédito de intensidade. Pela primeira vez, a legenda vai indicar o escolhido em prévias marcadas para 21 de novembro, nas quais despontam dois candidatos: os governadores de São Paulo, João Doria, e do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite — o veterano Arthur Virgílio, ex-prefeito de Manaus, corre por fora. A movimentação já provocou uma divisão entre os mais ilustres representantes da velha guarda da sigla: o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso optou pelo paulista e o senador Tasso Jereissati anunciou nesta semana apoio ao gaúcho. O vencedor terá uma missão significativa: recuperar o prestígio da sigla nas urnas após o fracasso em 2018, quando Geraldo Alckmin obteve 4,7% dos votos no primeiro turno, e reverter uma tendência de encolhimento que vem desde 2002, mostrando força para ser peça-chave na busca da quebra da polarização entre Jair Bolsonaro e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, hoje os favoritos.
A corrida para definir qual tucano vai assumir esse desafio na campanha ganhou mais intensidade nas últimas semanas, com as movimentações de Doria e Leite para arrebanhar apoios país afora. Com o domínio da máquina da sigla na unidade da federação mais rica do país e 50 bilhões de reais para investimentos em 2022, o grupo do governador diz, sem modéstia, esperar por 99% dos votos no colégio eleitoral paulista. Doria já recebeu também apoios declarados dos diretórios do Distrito Federal, Pará, Acre e Tocantins. Tenta avançar agora no Centro-Oeste e, dentro da campanha, a desistência de Arthur Virgílio e sua adesão ao governador são dadas como certas num futuro próximo, o que o amazonense nega em público. “Doria caminha para vencer as prévias, unir o partido e, na sequência, pacificar o país”, diz o secretário de Desenvolvimento Regional paulista, Marco Vinholi, presidente do PSDB no estado.
O vice Rodrigo Garcia, que migrou do DEM para o ninho tucano, foi escolhido por Doria para disputar o governo e tem sido peça importante na consolidação do apoio dos prefeitos. Como efeito colateral, Geraldo Alckmin, que tinha pretensões de concorrer mais uma vez ao Palácio dos Bandeirantes, está de malas prontas para sair do partido do qual foi um dos fundadores. Governador por quatro mandatos, ele aponta Doria como o responsável por lhe fechar as portas para uma nova candidatura, o que considera uma traição porque foi ele quem bancou o atual governador quando ele se aventurou na primeira disputa eleitoral, à prefeitura paulistana, em 2016. O rancor ficou claro no sábado 25, quando sobraram críticas a Doria no encontro de Alckmin, seu ex-vice-governador Márcio França (PSB), o ex-ministro Gilberto Kassab e o presidente da Fiesp, Paulo Skaf. Próximo do PSD de Kassab, mas sem tirar os olhos da fusão PSL-DEM, Alckmin lidera as pesquisas ao governo e desponta, ironicamente, como uma ameaça ao maior ativo eleitoral do PSDB: os 24 anos de hegemonia no estado mais rico do país e berço da legenda.
Pelos lados de Eduardo Leite, a adesão de Tasso foi comemorada por conferir mais peso político ao gaúcho, visto como ainda muito jovem (36 anos). Cacique remanescente dos anos dourados do PSDB, Tasso avalia que a aliança com Leite pode dar a ele 80% dos diretórios estaduais (uma precisão otimista demais). Leite já conta com o apoio do Rio Grande do Sul, Bahia, Minas Gerais, Ceará, Alagoas, Amapá e Paraná. “Tasso tem um número muito grande de apoiadores no Nordeste e entre lideranças nacionais importantes”, avalia o deputado Lucas Redecker (RS), aliado de Leite. O gaúcho é visto por alguns tucanos de fora de São Paulo como um nome mais palatável que Doria a uma possível composição com outros partidos, o que inclui até a possibilidade de o PSDB não ter candidato a presidente, algo que nunca ocorreu na história. Nos bastidores da sigla, inclusive, a adesão de Tasso foi vista por parte do tucanato como um movimento para esvaziar a candidatura de Doria e fazer de Leite o vice numa composição com Ciro Gomes. Em caso de sucesso na manobra, o senador cearense garantiria uma cota de influência num possível futuro governo comandado por sua inseparável cria do mesmo estado, o presidenciável pedetista. Leite tratou de negar esses rumores, atribuindo-os à “turma paulista”. Mas é inegável que uma ala da sigla discuta hoje seriamente a possibilidade de não ter um representante como cabeça de chapa na disputa ao Palácio do Planalto. “O centro precisa ter a consciência de que uma única candidatura deve representar a todos. Não posso exigir que ela seja do PSDB”, diz Pedro Cunha Lima, presidente do Instituto Teotônio Vilela, braço de formação política tucano.
O grande fiador dentro do partido da tese da não candidatura é Aécio Neves. Derrotado nas eleições de 2014 e abatido por denúncias de corrupção, o deputado mineiro busca hoje a sobrevivência política operando nas sombras e mostrando alinhamento com o governo Bolsonaro. O que há por trás da campanha do mineiro: sem o investimento em um presidenciável do PSDB, sobraria mais dinheiro do Fundo Partidário para políticos em busca de reeleição, como é o caso do próprio Aécio, que necessita do escudo da imunidade parlamentar para se proteger da Justiça. Ele e Tasso já defenderam em público a tese de que o PSDB não precisa necessariamente encabeçar uma chapa em 2022. Nas fileiras de Doria, inclusive, identificam-se digitais do mineiro por trás da campanha de Eduardo Leite e de conversas cada vez mais próximas com Alckmin para abrir rachaduras no apoio de prefeitos paulistas às pretensões do governador. Do outro lado da trincheira, correligionários de Aécio e do gaúcho acusam Doria de comprar aliados com a força financeira da máquina estadual.
As divisões entre os dois principais concorrentes do PSDB ocorrem também nos caminhos que cada um escolheu para tentar se viabilizar. Doria tenta se livrar da imagem de “antipático” e de ser excessivamente paulista. Além de voltar a apelar à figura do “João Trabalhador”, ressaltando uma incansável disposição à labuta reconhecida até por seus inimigos, ele vai apostar em relatos sobre as dificuldades que viveu na sua infância, principalmente depois da cassação e exílio de seu pai, o então deputado federal João Agripino da Costa Doria, pela ditadura militar, e a morte de sua mãe, Maria Sylvia, em 1974. Além de um apelo mais emocional junto ao eleitor, Doria recalibra a sua estratégia política: em vez de bater excessivamente em Bolsonaro, como vinha fazendo até agora, o alvo passará a ser Lula. Já na carta de lançamento de sua candidatura, no último dia 20, ele se colocou como a alternativa mais confiável para derrotar o petismo. Entre os aliados, diz-se que a estratégia é ser um “Bolsonaro sem os defeitos”, dirigindo-se aos eleitores arrependidos do capitão. A aposta aqui é que a popularidade de Bolsonaro vai continuar derretendo, o que pode provocar o fato inédito de um presidente fracassar na reeleição — e sem conseguir passar sequer ao segundo turno, outro feito inédito. Dentro dessa estratégia, Doria quer se aproximar do ex-ministro Sergio Moro, ainda um herói para o público antipetista (o governador e Moro jantaram na quarta-feira 29, em encontro que incluiu o ex-ministro e presidenciável Luiz Henrique Mandetta, do DEM). Doria tem ainda como trunfos consideráveis o fato de ser o “pai da vacina” contra a Covid-19 no país e a situação econômica de São Paulo, cujo PIB deve crescer quase 8% em 2021, o dobro da projeção para o Brasil.
Leite, por sua vez, ostenta como principal realização política até agora um esforço de saneamento das contas do Rio Grande do Sul. O gaúcho investe ainda em uma imagem mais liberal e progressista, como ao assumir no lançamento de sua candidatura que é gay. Os acenos são na direção de eleitores menos conservadores, mas o problema é que hoje eles se mostram muito mais identificados com Lula e Ciro Gomes. O ponto em comum com Doria são as dificuldades domésticas, a começar pelo dado de que nenhum dos dois é unanimidade nos estados que comandam. Segundo o mais recente Datafolha, 38% dos paulistas consideram a gestão Doria ruim ou péssima — ante 24% de ótima ou boa. O último levantamento do Paraná Pesquisas sobre o governo Leite, de maio, mostrou um índice de ruim ou péssimo de 31,8%. Apesar da disputa cada vez mais acirrada nas prévias tucanas, ambos têm mantido canais abertos de diálogo no esforço de honrar o pacto de apoio ao vencedor no pós-novembro.
A crise existencial que aflige atualmente o PSDB não tem origem recente. A percepção é de que o partido tem dificuldades para recuperar o eleitorado porque o fator preponderante para as vitórias de FHC, o controle da hiperinflação, não está mais no centro da agenda nacional (embora o tema possa voltar até o ano que vem). “Hoje não tem discurso, não tem projeto”, critica Luiz Carlos Mendonça de Barros, ministro das Comunicações e presidente do BNDES durante os governos FHC. O apagão de 2001 e os percalços vividos pela candidatura de José Serra em 2002, que, além de ter dividido o partido, “escondeu” FHC, também são vistos como determinantes para o início da derrocada. “Virou uma taba com muito cacique e pouco índio”, avalia o cientista político Bolívar Lamounier, um dos fundadores da legenda. Houve, além disso, dificuldades para recalcular a rota. O envolvimento de alguns integrantes da cúpula tucana em casos de corrupção, Aécio como o pior deles, prejudicou demais a imagem do partido. Quatro anos depois de chegar muito próximo de voltar ao poder na disputa com Dilma Rousseff, o PSDB viu quase a totalidade do seu eleitorado migrar para o bolsonarismo. Hoje, siglas como o PSD e o DEM-PSL tentam monopolizar o centro e a centro-direita. Os tucanos agora precisam definir um presidenciável competitivo, evitar rachas permanentes provocados pelas prévias e reverter a perda de relevância dos últimos anos. São desafios enormes, embora superáveis.