Quando soube que a esposa estava grávida, o vice-cônsul da França no Brasil, Jacques Clostermann (1895-1983), decidiu que o filho nasceria em seu país de origem.
Por essa razão, tratou logo de comprar duas passagens de primeira classe no transatlântico italiano Principessa Mafalda, um dos mais luxuosos da época, com capacidade para transportar até 1.530 passageiros.
Mas um incêndio no navio em alto-mar, a cerca de 200 milhas do litoral brasileiro, obrigou o diplomata francês a mudar seus planos.
Foi quando Clostermann levou a mulher, Madeleine Carlier (1895-1984), grávida de sete meses, para dar à luz em Curitiba, a 397 quilômetros de Santos, com um médico de sua confiança – um ginecologista austríaco.
Em 28 de fevereiro de 1921, nasceu o filho único do casal: o franco-brasileiro Pierre Henri Clostermann. Vinte e três anos, três meses e seis dias depois, Clostermann entrou para a História como o único brasileiro conhecido por participar do Dia D, o 6 de junho de 1944, que marcou o desembarque das tropas aliadas nas praias da Normandia, no norte da França, então ocupada pelos nazistas.
“Um peixinho no oceano. É assim que eu me sentia”, descreveu em 2004, aos 83 anos.
“Na guerra, você avista um avião pelo retrovisor e não sabe se é amigo ou inimigo. Essa sensação dura um segundo, mas acredite: é muito desagradável. Eu só conseguia pensar em uma coisa: ‘Quero dar o fora daqui o mais depressa possível!’”.
A declaração foi dada ao músico João Barone no dia 1º de junho de 2004 na casa do ex-piloto, na cidade francesa de Perpignan.
Barone, baterista dos Paralamas do Sucesso, viajou para a França para participar das comemorações de 60 anos do Dia D. Seu pai, João de Lavor Reis e Silva (1918-2000), estava entre os 25.334 pracinhas brasileiros que lutaram na Segunda Guerra.
Pouco antes de embarcar, o músico entrou em contato com a Força Aérea Brasileira (FAB): queria prestar homenagem ao único brasileiro conhecido por participar da invasão.
A FAB, então, enviou para a França uma comitiva de ex-combatentes do 1º Grupo de Aviação de Caça, o famoso Senta a Pua!, para entregar a Clostermann a medalha Santos Dumont, a mais alta condecoração da Aeronáutica.
A prefeitura de Curitiba também homenageou o filho ilustre com uma placa.
O brigadeiro Rui Moreira Lima (1919-2013) foi um dos três ex-pilotos da FAB que viajaram para homenagear Clostermann. Durante o trajeto, o veterano conversou com Barone sobre o dia em que, no finalzinho dos anos 1950, os dois se encontraram no Rio de Janeiro para bater papo.
Entre um chope e outro, terminaram a noite em uma animada roda de choro em um bar da Zona Norte.
Quem encontraram lá? Pixinguinha (1897-1973) e Jacob do Bandolim (1918-1969).
“Clostermann se considerava francês no papel, mas brasileiro de coração. Sua história daria um filme e tanto!”, relata Barone que transformou sua viagem em documentário, Um Brasileiro no Dia D (Editora Abril, 2006), e em livro, A Minha Segunda Guerra (Panda Books, 2009).
‘Meu Deus, o que estou fazendo aqui?’
O pequeno Pierre Clostermann viveu em Curitiba até completar um ano de idade – depois, passou a morar em Paris. Durante anos, o garoto se dividiu entre os dois países: cursava o ano letivo na França e curtia as férias escolares no Brasil. Quando terminou o ginásio, aos 16 anos, veio morar no Rio de Janeiro.
Na então capital federal do país, estudou filosofia no Liceu Franco-Brasileiro e aprendeu a pilotar no Aeroclube do Brasil. Seu instrutor era o alemão Karl Benitz.
Em uma de suas decolagens, um urubu colidiu contra a hélice de sua aeronave Bucker Jungmann. Conclusão: Clostermann foi obrigado a fazer um pouso de emergência.
À noite, escrevia para o jornal Correio da Manhã. Assinava seus artigos sobre aviação como P. Henry C.
Do Brasil, Clostermann seguiu para os EUA, onde fixou residência, em 1938. Na Califórnia, estudou engenharia aeronáutica na Ryan School of Aeronautics, em San Diego.
O aviador estava no Rio quando, em 22 de junho de 1940, a França se rendeu ao exército de Hitler.
Poucos dias depois, recebeu uma carta de seu pai: “Junte-se ao General De Gaulle ou não será mais meu filho!”.
O pai de Pierre, Jacques Clostermann, havia lutado na Primeira Guerra Mundial. Ele sofreu ferimentos e, com o fim do conflito, recebeu a Ordem Nacional da Legião de Honra da França. Depois disso, tornou-se diplomata.
Após a ordem do pai, a próxima parada de Pierre foi a Inglaterra. Alistou-se na Força Aérea Francesa Livre (FAFL) e, ao lado de outros compatriotas, serviu na Real Força Aérea Britânica (RAF).
“Cheguei a Liverpool, bem no meio de um bombardeio. Pensei: ‘Meu Deus, o que estou fazendo aqui?’ Era tão feliz na praia de Malibu. Que estúpido eu sou!”, admitiu a Barone, em 2004.
Em 27 de julho de 1943, Clostermann, a bordo de um Spitfire, abateu um Focke Wulf 190. Foi a primeira das 33 aeronaves inimigas que o piloto abateu na Segunda Guerra.
Das 33 vitórias conquistadas, 19 foram individuais e 14 compartilhadas. Não bastasse, reivindicava ainda a destruição de 225 caminhões, 72 locomotivas, cinco tanques, dois lança-torpedos e um submarino.
“A marca de 33 vitórias é, sem dúvida, impressionante. Mas, o que mais me impressiona na vida de Clostermann é o fato de ele ter sobrevivido à guerra”, afirma Delmo Arguelhes, doutor em História pela Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador do Núcleo de Estudos Avançados do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF).
“E não ter se deixado abater e ter continuado a combater os nazistas voando pela Grã-Bretanha”.
O Spitfire foi apenas um dos modelos que Clostermann pilotou durante a Segunda Guerra.
Batizou um Tempest de “Le Grand Charles” (“O Grande Charles”), em homenagem ao general francês Charles de Gaulle (1890-1970), que liderou as Forças Francesas Livres durante a Segunda Guerra.
Clostermann fez amigos – o maior deles foi Jacques Remlinger (1923-2002), que conheceu na escola de cadetes Cranwell da RAF, na Inglaterra – e viveu apuros.
Ele chegou a ser ferido na perna no dia 24 de março de 1945 e obrigado a passar uma semana de repouso em um hospital de campanha.
Até casar durante a guerra, Clostermann se casou. Com Lydia Jeanne Starbuck na Igreja St. Denys, em Sleaford, no condado de Lincolnshire, no dia 28 de abril de 1943.
Dia D não foi ‘início do fim’ nem ‘a batalha que salvou o mundo’
O navio americano USS General W.A. Mann chegou ao porto de Nápoles, no sul da Itália, no dia 16 de julho de 1944. Trazia a bordo os 5 mil homens que integravam o 1º Escalão da Divisão de Infantaria Expedicionária da Força Expedicionária Brasileira (FEB).
Sob o comando do general Euclides Zenóbio da Costa (1893-1963), aquele seria o primeiro dos cinco escalões enviados do Brasil à Itália para lutar na Segunda Guerra.
Ao todo, 25.334 expedicionários – 15.265 deles combatentes propriamente ditos – participaram do maior confronto militar do século 20.
Os pracinhas da FEB, incorporados ao 5º Exército dos EUA, comandado pelo general Mark Clark (1896-1984), participaram de batalhas decisivas, como a conquista de Monte Castello, Castelnuovo e Montese.
“A FEB não participou do Dia D. Sua atuação se deu em outra frente de combate: a campanha italiana. E em um período posterior ao da invasão da Normandia”, explica o historiador Francisco César Ferraz, doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP), professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e autor de Os Brasileiros e a Segunda Guerra Mundial (Zahar, 2005).
“A Segunda Guerra foi interdependente. Havia os aliados na Normandia, os soviéticos no Leste Europeu e os brasileiros na Itália. Cada um contribuiu de um jeito, em diferentes proporções estratégicas, para a derrota do Eixo”.
“O Dia D foi, sem dúvida alguma, uma batalha muito importante porque ajudou a acelerar o fim da Segunda Guerra Mundial. Mas, não foi ‘o início do fim’. Nem ‘a batalha que salvou o mundo’”, afirma o historiador Icles Rodrigues.
Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e criador do podcast História FM e do canal Leitura ObrigaHISTÓRIA, Rodrigues acaba de lançar O Dia D – Como a História Se Tornou Mito (Contexto, 2024).
“A ideia de que o Dia D teria sido ‘o início do fim’ foi inventada pelos aliados ocidentais, especialmente os EUA, para fazer parecer que só ali, em 6 de junho de 1944, a Alemanha começou a perder a guerra. No entanto, desde a derrota em Kursk, quase um ano antes, a Alemanha já não tinha chances reais de vencer. Desde então, os alemães nunca mais realizaram uma ofensiva”.
‘Quem diz que nunca sentiu medo é porque gosta de contar histórias’
Ao todo, Clostermann participou de 432 missões, entre escoltas, varreduras e interceptações. Entre um ataque e outro, rabiscava suas memórias em cadernos de anotações.
Na capa de um deles, escreveu: “No caso de eu ser morto ou dado como desaparecido, desejo que este livro seja enviado a meu pai, o capitão Jacques Clostermann, no QG do Exército Francês, em Brazzaville”.
Não foi necessário.
Em 1948, três anos depois do fim da Segunda Guerra, publicou O Grande Circo (Le Grand Cirque). Traduzido para 30 idiomas, vendeu mais de três milhões de exemplares.
No Brasil, ganhou duas edições: em 1961, pela extinta Flamboyant, e em 2013, pela C & R Editorial. No prólogo, o autor descreve a guerra como “ingrata, mas fascinante”.
“Muitos livros de memórias de pilotos militares, não apenas da Segunda Guerra, mas de outros conflitos, como o Vietnã, trazem a preocupação de seguir a ‘história oficial’. Clostermann não parece ter se submetido a qualquer ‘filtro’. Sua linguagem é direta e surpreendentemente franca. Ele, inclusive, não poupa de críticas nem superiores, nem aliados. É quase um relato jornalístico”, observa o jornalista Cláudio Lucchesi, que editou O Grande Circo pela C & R Editorial.
Das muitas histórias contadas no livro, Lucchesi aponta a “parada aérea” da vitória, organizada pela RAF pouco depois da rendição alemã, como a mais impactante.
E explica o motivo: “É, em todo o livro, o momento de maior ira e revolta de Clostermann”.
No dia 12 de maio de 1945, o oficial britânico Bernard Montgomery (1887-1976) convidou o militar soviético Georgy Zhukov (1896-1974) para visitar os escombros das cidades de Hamburgo e Bremerhaven, na Alemanha.
E, para impressioná-lo, a RAF organizou uma parada aérea, com cerca de 100 esquadrões – de caças Spitfire, Tempest e Typhoon a bombardeiros Mosquito e B-25.
“Clostermann considerou tal demonstração de força uma estupidez e uma irresponsabilidade. Eram aviões demais juntos e seus pilotos estavam cansados. E tudo por um objetivo político”, explica.
Quase no final da parada, houve uma colisão. Três pilotos do esquadrão de Clostermann morreram. Ele só escapou com vida porque saltou de paraquedas.
Clostermann entrou para a reserva no dia 27 de julho de 1945. Ao todo, contabilizou mais de 2 mil horas de voo, 600 delas em combate. Em 1946, ingressou na política.
Considerado um ás da aviação francesa, foi eleito deputado e reeleito sete vezes consecutivas. Dez anos depois, em 1956, retornou à cabine de comando de uma aeronave.
Participou por dois anos da Guerra da Argélia e publicou Episódios da Guerra Aérea na Argélia (Flamboyant, 1961).
Pierre Henri Clostermann morreu em 22 de março de 2006, aos 85 anos.
“Quem diz que nunca sentiu medo é porque gosta de contar histórias. Eu, pessoalmente, ficava apavorado. As balas passavam a 20 centímetros do meu capacete”, recordou o veterano, em sua última entrevista, dois anos antes de morrer.