Que atire a primeira hóstia quem nunca viu um crucifixo pendurado na parede em uma instituição pública no Brasil. Sim, em pleno século 21, mais de 130 anos depois de ser oficializada a separação entre Igreja e Estado, ainda há repartições e gabinetes da administração laica ostentando o símbolo do cristianismo.
Para não dizer em políticos usando o nome de Deus em vão — no caso, para justificar suas decisões que deveriam se prezar pelo civil e não pelo religioso — e até cidades que afixam placas, em suas entradas, dizendo que “pertence ao Senhor Jesus” e outros que-tais.
Mas como se deu a separação entre Igreja e Estado no Brasil? E por que essa ruptura foi tão gradual, a ponto de a religião ainda estar presente no dia a dia das instituições públicas?
Oficialmente, o Brasil se tornou um Estado laico com a Proclamação da República, em 1889. Era a tendência, naquele período de positivismo e ideais de constituição de um Estado moderno. Mas é preciso retroceder no tempo para entender essa relação e, principalmente, como já havia um desgaste entre o império brasileiro e a cúpula da Igreja ao longo do século 19.
Padroado
Professor na Universidade Federal do Maranhão, o historiador Ítalo Domingos Santirocchi explica que essa relação íntima entre fé e poder, no caso brasileiro, é uma herança portuguesa. “Era o direito do padroado, que dava ao rei português o direito de administrar parte da Igreja”, explica ele à BBC News Brasil.
Segundo suas pesquisas, essa relação foi sistematizada a partir de uma gama de documentos emitidos por coroa e Igreja Católica em duas fases. Primeiramente, de 1420 a 1551. Em seguida, de 1486 a 1511. Santirocchi identificou que havia idas e vindas entre petições pró e contra tais direitos.
Era um momento delicado, aquele. Ao mesmo tempo que havia um contexto de expansão marítima, o que resultaria em um imperialismo para o Estado e um potencial aumento de clientela para a Igreja, a Europa vivia um cenário em que diversas monarquias desafiavam a hegemonia da Igreja Católica, inclusive patrocinando a fundação de igrejas nacionais.
Historaidores como Santirocchi entendem, portanto, que isso acabou fazendo com que a cúpula católica visse como um bom negócio conceder poderes eclesiásticos para as coroas abertas a isso — no caso, Espanha e Portugal. Além de manter esses povos dentro do catolicismo, ainda havia a possibilidade de chegar a novos fiéis.
Na prática, a coroa mandava e desmandava. Criava dioceses e paróquias, nomeava bispos. O papa apenas precisava ratificar. Em troca: o governo precisava construir e manter as igrejas, bancar a côngrua — o salário dos religiosos —, construir e financiar o funcionamento de seminários e até mesmo investir em trabalhos missionários.
A Igreja Católica também contribuía justificando e legitimando o movimento expansionista, é claro. Em artigo acadêmico de 2010, o jurista Rulian Emmerick, atualmente professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, comentou que “o projeto de colonização das novas terras pelo Estado português teria grandes dificuldades de ser implementado sem o apoio da Igreja Católica enquanto instituição legitimadora do poder e responsável pela coesão social e pela unidade nacional”.
Emmerick lembra que “em boa parte da história da sociedade brasileira (…) o direito do Estado confundia-se com o direito divino, isto é, o direito ditado pela Igreja Católica”.
“Desta forma, as instituições Igreja e Estado confundiam-se enquanto instituições legitimadoras do poder e normatizadoras dos corpos e das mentes. Ambas tinham pretensões de regular os princípios organizadores da incipiente sociedade brasileira e conquistar a consciência dos sujeitos, bem como deter o monopólio do capital simbólico no imaginário social”, pontua o jurista, em seu artigo.
Emmerick analisa as contrapartidas previstas pelo regime do padroado e resume que enquanto “os reis de Portugal detinham o direito de criar cargos eclesiásticos, nomear seus titulares, arrecadar o dízimo nos cultos e autorizar a publicação das atas pontifícias”, a Igreja se beneficiava porque a coroa facilitava “a difusão da religião católica nas novas terras” e se responsabilizava “pela construção de igrejas, mosteiros etc”.
No Brasil Colônia essa relação foi automática, porque Brasil era parte de Portugal. Com a independência, em 1822, houve uma jogada que pode ser lida até mesmo como um movimento de dom Pedro 1º (1798-1834), o primeiro imperador, para deixar claro que quem dava as cartas era ele – e não a Igreja.
Porque o regime que era fundamentado por documentos papais passou a constar da Constituição. O texto, publicado em 25 de março de 1824, já traz no início que é redigido “em nome da Santíssima Trindade”.
Na carta, a religião católica é mencionada quatro vezes. O artigo 5º do primeiro título, que define a organização social do império, crava: “A religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do templo”.
O texto constitucional ainda prevê o texto que deve ser lido como juramento durante a nomeação de um novo imperador: “Juro manter a religião católica apostólica romana, a integridade, e indivisibilidade do império; observar, e fazer observar a constituição política da nação brasileira, e mais leis do império, e prover ao bem geral do Brasil, quanto em mim couber”.
Santirocchi contextualiza que “após a independência, os direitos que eram concessões papais foram estabelecidos pela constituição”. E o documento instituído ainda delegava ao imperador o direito de “conceder ou negar o beneplácito aos decretos dos concílios e letras apostólicas e quaisquer outras constituições eclesiásticas”.
Mas o papa não se deu por vencido. Em 1827 — ok, a distância e a comunicação da época faziam com que ações e reações levassem mais tempo —, o papa Leão 12 (1760-1829) mandou publicar a bula Praeclara Portugalia, concedendo esses direitos ao rei.
“Só que [pela constituição] todo e qualquer documento papal tinha de ser aprovado e receber o beneplácito do imperador. E esse documento não recebeu o beneplácito”, nota Santirocchi. “Mas, para a Igreja, era ela quem havia conferido esse direito ao imperador. Para o imperador, era um direito constitucional.”
Mais tarde, as rusgas só aumentariam. Conforme lembra o historiador, em 1858, “o Brasil e a Santa Sé não chegaram a um acordo para celebrarem uma concordata”.
“Os bispos queriam liberdade para se comunicar com o papa, administrar e organizar as dioceses”, ressalta ele, lembrando que, até a década de 1870, eram somente 12 as dioceses no Brasil, com uma delas tendo o status de arquidiocese, Salvador.
Na contenda, “o Estado queria controlar o aparato religioso”, acrescenta Santirocchi, “como instrumento legitimador do sistema”. E seguir tratando “o clero como funcionário público”. “Tudo isso diminuindo cada vez mais os repasses financeiros para a Igreja”.
“A partir dos anos 1870 vários grupos passaram a pressionar para a separação [entre governo e religião]”, afirma o historiador. “Os republicanos, os liberais mais radicais e até mesmo alguns católicos, padres e bispos, pois acreditavam que era melhor uma igreja livre, sem apoio financeiro do Estado.”
Ele recorda que esse desgaste se intensificou ainda mais depois da chamada “questão religiosa” ocorrida entre 1872 e 1875, quando dois bispos foram presos porque, entre o papa e o imperador, preferiram obedecer ao papa. “Eles decidiram punir as irmandades religiosas que tinham maçons em sua diretoria”, explica Santirocchi.
“Embora tenha ocorrido de forma institucionalmente abrupta, no sentido da transformação constitucional [no pós-proclamação da República], eu diria que a mudança foi sendo feita de forma gradual, ainda no período da monarquia”, diz à BBC News Brasil o historiador Victor Missiato, pesquisador na Universidade Estadual Paulista e professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré.
Missiato recorda que dom Pedro 2º (1825-1891), o segundo e último imperador do Brasil, “começou a estabelecer algumas políticas no sentido de afastar o poder da Igreja, principalmente nas décadas de 1870 e 1880”.
O divórcio oficial entre Igreja e Estado
Oficialmente, o acordo que resultaria na separação entre a religião católica e o poder civil no Brasil é o decreto 119-A, de 7 de janeiro de 1890. Ali, o então chefe do governo provisório da república recém-proclamada, Manoel Deodoro da Fonseca (1827-1892), proibiu “a intervenção da autoridade federal e dos Estados federados em matéria religiosa”, consagrou “a plena liberdade de cultos” e extinguiu o tal regime do padroado.
São sete artigos. A lei proibia que a autoridade federal ou dos Estados criasse “leis, regulamentos ou atos administrativos estabelecendo alguma religião” e determinava que todos os “habitantes do país” tivessem tratamento sem diferenças.
A liberdade de culto também foi instituída e ficou determinada que todas as igrejas e confissões religiosas seriam reconhecidas como “personalidade jurídica”.
Mas o governo federal também precisou ceder. Ficou acertado, na lei, que o Estado precisava seguir pagando a côngrua e, por um ano, subvencionaria os seminários.
Santirocchi conta que a lei resultou de uma hábil negociação entre o jurista Rui Barbosa (1849-1923), então Ministro da Fazenda, e um dos protagonistas — do lado católico — da “questão religiosa”, o bispo Antônio de Macedo Costa (1830-1891).
Naquele mesmo ano de 1890, Costa se tornaria arcebispo de Salvador. “Ele estava cotado para se tornar o primeiro cardeal da América Latina, se não tivesse morrido meses depois”.
“Com o fim do padroado, o Estado deixa de ter o direito justificado de interferir na Igreja. E também não paga mais à Igreja. A Igreja passa a ter de se virar e se autofinanciar”, acrescenta Santirocchi.
E talvez a Igreja Católica estivesse muito acomodada em uma zona de conforto, sob o sustento do governo federal. Prova disso é que a separação institucional, em vez de prejudicar o catolicismo, fez com que a religião crescesse no Brasil, fora das amarras do controle governamental.
“Depois da separação a Igreja católica cresceu vertiginosamente. Muitas paróquias, dioceses e arquidioceses foram criadas, muitas ordens religiosas vieram para o Brasil”, analisa Santirocchi. “O mesmo aconteceu com as religiões protestantes e evangélicas: cresceram, aumentaram a variedade de denominações, nasceram as primeiras igrejas evangélicas brasileiras já no início do século 20.”
Mas essa separação não foi automática. Primeiro porque era natural uma certa resistência de alguns setores da Igreja e, por outro lado, a complacência de alguns setores da administração pública. Em segundo lugar, o emaranhado entre Igreja e Estado era tão extenso que, realmente, ficava complicado identificar todos os pontos de contato e ingerências da noite para o dia.
Um santo com salário pago pelo Estado
Em 2017, quando estava pesquisando em diversos documentos e arquivos públicos em busca de informações para meu livro Santo Antônio: A história do intelectual português que se chamava Fernando, quase morreu na África, pregou por toda a Itália, ganhou fama de casamenteiro e se tornou o santo mais querido do Brasil (Editora Planeta, 2021), deparei-me com uma história bastante inusitada envolvendo o governo brasileiro e o santo português.
Desde os tempos coloniais, Santo Antônio vinha sendo nomeado militar – com as mais diversas patentes – em muitas localidades do território brasileiro. Era uma cargo simbólico, obviamente, mas que previa remuneração equivalente ao salário militar compatível com o cargo – dinheiro este que era pago a algum convento ou paróquia.
Durante o período em que a corte portuguesa transferiu-se de Lisboa para o Rio de Janeiro, o então príncipe regente João 6º (1767-1826) publicou um decreto fazendo do santo sargento-mor de todo o exército luso-brasileiro.
No documento, o monarca confessou “particular devoção” ao santo e frisou que fazia isto como gratidão pela intercessão do mesmo “em prol da monarquia portuguesa, duramente hostilizada” por Napoleão Bonaparte (1769-1821).
Os procuradores do santo eram os frades franciscanos do convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro – ou seja, era essa a instituição que ficava com os salários do “militar”. O santo acabaria sendo promovido, três anos mais tarde, a tenente-coronel de infantaria.
A trajetória militar de Santo Antônio no Brasil chegaria ao fim com a proclamação da República.
Ao fazer um pente-fino nas contas estatais, o delegado fiscal do Tesouro Nacional, Antônio de Pádua Mamede, impugnou a inclusão do nome de Santo Antônio nas folhas de pagamento.
O argumento era profundamente republicano. “Não é lícito que a nação continue a pagar aquele soldo (…) concorrendo-se, assim, para conservar a crendice que teve o príncipe regente ao expedir aquelas patentes, sob o fundamento de haver o dito Santo Antônio influído para salvar a monarquia portuguesa da grande crise que então atravessava”, considerou ele.
O processo levou cinco anos para ser aprovado. Em mais um capricho do deus das coincidências, o documento que extinguiu o salário do santo foi assinado por um ministro da fazenda de nome Francisco Antônio de Sales (1863-1933).
O ato foi registrado na folha 21 do livro 486 da então diretoria de contabilidade da guerra.
Mesmo sem salário, contudo, ainda não havia sido publicado nenhum ato que extinguisse as patentes do santo. Seguia, portanto, o incansável Antônio um eterno integrante do Exército Brasileiro.
Até que, em 1824, o presidente Artur Bernardes (1875-1955) cobrou de seu ministro da guerra, Fernando Setembrino de Carvalho (1861-1947) que resolvesse a questão.
“O coronel Antônio de Pádua vai quase em três séculos de serviço. Nomeie-o general e ponha-o na reserva”, escreveu Bernardes. Solucionado o caso. Santo Antônio que desfrute do descanso merecido.
Depois da separação
No dia a dia da população, a separação entre Igreja e Estado resultou em algumas mudanças. De um lado, a liberdade de culto, inclusive em espaços públicos – com exceção para os espíritas e os de religiões africanas, “que ainda terão de lutar”, conforme lembra Santirocchi.
De outro, uma questão de ordem burocrática. Antes monopólio das paróquias, os registros de nascimento, casamento e óbitos passaram a ser incumbência do estado. Inclusive com a instituição do casamento civil. E a seguinte criação de cemitérios públicos.
Mas, conforme recorda o historiador Victor Missiato, nem só de crucifixos em repartições públicas sobrevive a religiosidade dentro do aparato estatal. “É um processo gradual e relativo”, pondera ele.
Um exemplo está na educação. Em 1931, em sua primeira passagem pela presidência do país, Getúlio Vargas (1882-1954) promoveu a volta do ensino religioso nas escolas – tornando “facultativo” o que havia sido abolido; na prática, reativando-o.
Ensino religioso que, no dia a dia daquele contexto, beneficiava exclusivamente a Igreja Católica.
“Nos anos 1920, a Igreja Católica se reaproximou dois políticos. Essa reconciliação ficou mais evidente depois da Revolução de 1930, quando Getúlio Vargas chegou ao poder e, alguns meses depois, publicou o decreto que tornava o ensino religioso facultativa nas escolas públicas”, afirmou o historiador Angelo Antonio Greco, em sua tese de doutorado defendida em 2017 na Universidade de São Paulo.
Segundo Greco, o ensino religioso “foi instrumento de fortalecimento católico, reconquistando espaços perdidos na República Velha”.
“O decreto de Vargas foi feito claramente em benefício dos católicos e, anos depois, foi incorporado na Constituição de 1934”, afirma o pesquisador.
“O ensino religioso era considerado como obra principal pelos católicos e houve grande organização na arquidiocese de São Paulo, com fiscais e delegadas fazendo relatórios do seu andamento nas escolas”, relata o historiador, destacando que “houve a inserção do ensino católico num ambiente laico”, em escolas públicas, “com alunos de outras confissões religiosas”.
E Deus está mesmo nos detalhes. Victor Missiato lembra que mesmo a Constituição atual, de 1988, parece não se esquecer das relações intrincadas entre religião e Estado. O preâmbulo do texto diz que o mesmo está sendo publicado “sob a proteção de Deus”.
“A laicidade brasileira é uma laicidade republicana, mas ela tem aspectos morais que, na longa duração, a gente pode dizer que estão ligados a uma visão cristã de sociedade. No Brasil, essa separação entre Igreja e Estado não ocorre de forma nitidamente delimitada”, diz.
Ele recorda que diversas legislações civis demoraram a perder o lastro religioso, como no caso da lei do divórcio — instituída apenas em 1977. Outro exemplo é o casamento homoafetivo, reconhecido no Brasil apenas em 2013.
“Não é uma linha reta. A cultura republicana vai sendo instituída com o tempo, de forma gradual, afastando os temas religiosos dos temas do Estado. Mas até hoje ainda temos muitas relações com a religião, por exemplo no Congresso, onde muitas decisões ainda são pautadas pela religião.”