O roteiro é sempre o mesmo: ocorre uma tragédia ambiental, políticos e autoridades sobrevoam a região devastada, governantes declaram estado de calamidade pública e, como se não tivessem culpa no cartório, anunciam a liberação emergencial de recursos para remediar os estragos. Foi assim nas enchentes em São Paulo que resultaram na morte de 65 pessoas no ano passado. Foi assim quando fortes chuvas provocaram deslizamentos de terra na Região Serrana do Rio e 918 mortes. Está sendo assim, agora, no Rio Grande do Sul. No último domingo (5) o estado recebeu uma comitiva formada pelo presidente da República, os chefes da Câmara, do Senado e do Tribunal de Contas da União (TCU), além de treze ministros de Estado. Com ares de consternação, eles saíram de Brasília às pressas com a promessa de socorrer os gaúchos no pior desastre natural de sua história. Líder da missão, Lula sobrevoou a capital, Porto Alegre, com o governador Eduardo Leite (PSDB), anunciou verbas bilionárias para as regiões afetadas e prometeu que finalmente sairá do papel um plano de prevenção para que “a gente pare de correr atrás da desgraça”.
Pelo histórico de inação do poder público, não é exagero apostar que a promessa, como ensina o roteiro de sempre, não será cumprida. Afinal de contas, boa parte dos atores que hoje estendem a mão para o estado tem seu naco de responsabilidade na tragédia. Apesar dos alertas dos especialistas e da gravidade da questão ambiental, o tema não sensibiliza a classe política, que prefere dedicar energia e verbas a obras com mais apelo eleitoral. Como consequência, a população fica desprotegida. Em 2022, último ano de estatísticas disponíveis, mais de 1,5 milhão de pessoas foram afetadas por alagamentos, enxurradas e inundações no Brasil, segundo dados da Agência Nacional de Águas (ANA). Na calamidade gaúcha, já são mais de 1,5 milhão de pessoas atingidas pelas enchentes. Em 2023, o Rio Grande do Sul já tinha passado por pelo menos quatro eventos climáticos provocados por ciclones e chuvas persistentes, que deixaram cerca de oitenta mortes, mas não há registros de grandes medidas de prevenção tomadas desde então. Foi sempre assim.
Em operação há cinquenta anos, o sistema de contenção das águas do Lago Guaíba em Porto Alegre, por exemplo, sofre com a falta de reparos e não conseguiu barrar o avanço da inundação que tomou a capital. “Em geral, gerenciamos os desastres de forma reativa. O ideal é que combinemos a gestão reativa com o gerenciamento do risco, formando uma espécie de ciclo: atuando em projetos de mitigação, preparação, previsão e alerta precoce e, diante do desastre, avaliando os impactos e focando na recuperação e reconstrução”, diz o pesquisador Luis Carlos Hernandez Hernandez, doutor em tecnologia ambiental e recursos hídricos pela Universidade de Brasília (UnB). De 2013 a 2023, período que abrange os governos Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro, investimentos da União para a Defesa Civil aplicar em reparos a danos causados por tragédias naturais foram quase três vezes maiores do que recursos direcionados a planejamento e mitigação de estragos (veja o quadro). Remediar, portanto, é bem mais caro do que prevenir — em termos financeiros e, principalmente, em vidas.
Os dados, não corrigidos pela inflação e tabulados pelo TCU desde os desastres de Petrópolis, que há dois anos deixaram 241 mortos, mostram que no ano passado, o primeiro do atual mandato de Lula, recursos públicos para socorro a vítimas, restabelecimento de serviços essenciais e reconstrução da infraestrutura danificada por intempéries foram mais de dezoito vezes maiores do que o destinado, no mesmo período, para a prevenção de tragédias. Ou seja: o dinheiro vai sempre depois, não antes. “Se o poder público não pensar em termos de políticas efetivas para um plano de estruturação e prevenção, sempre vai ser uma tragédia como esta. Falta infraestrutura para agir”, disse a VEJA a deputada Fernanda Melchionna (PSOL-RS), uma das únicas parlamentares do Rio Grande do Sul a destinar parte de suas emendas para a prevenção de desastres climáticos no estado. O caso da bancada gaúcha no Congresso é ilustrativo do desinteresse dos políticos em investir recursos nessa área. O Rio Grande do Sul tem 31 deputados federais e três senadores, que juntos tinham o direito de indicar cerca de 1,5 bilhão de reais em emendas individuais e de bancada ao Orçamento de 2024.
De todos eles, só três reservaram verbas para a área ambiental — Melchionna e as deputadas petistas Maria do Rosário e Reginete Bispo. O valor indicado pelo trio, somado, foi de 1,8 milhão de reais — 0,1% do total à disposição de toda a bancada gaúcha. O desinteresse tem explicação eleitoral — e, claro, eleitoreira. Remover famílias de áreas de risco é uma medida trabalhosa e, sobretudo, impopular. Além disso, ações preventivas não costumam dar tanto voto, não permitem cerimônias de inauguração e placas comemorativas e não têm o mesmo apelo do que a construção de uma praça ou a entrega de uma ambulância. “O baixo repasse à prevenção tem a ver com a ideia de que esse investimento não dá voto”, critica Melchionna. “O Legislativo trabalha sempre no curto prazo, o que não está correto. Isso é cultural. Quem investe em preservação investe a médio e longo prazo”, acrescenta a deputada Maria do Rosário, autora de uma emenda que destina 300 000 reais para “educação ambiental” no estado.
Como se sabe, planejamento não é propriamente o forte da classe política brasileira, que age por resultados imediatos e de fácil assimilação pela população. Essa lógica favorece as tragédias. Diante delas, representantes dos três poderes correm atrás do prejuízo, chegando sempre atrasados na hora de ajudar. O governo Lula anunciou, na quinta-feira, 9, um pacote de 51 bilhões de reais em medidas para o Rio Grande do Sul, que incluem antecipação de crédito e de benefícios, recursos para projetos e pagamento de parcelas extras do seguro-desemprego. Numa parceria do Planalto com os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), também foi aprovado um decreto legislativo que permite o repasse emergencial de recursos bilionários para o Rio Grande do Sul, sem que a meta fiscal seja prejudicada. O governo anunciou ainda que os parlamentares poderão remanejar quase 500 milhões de reais em emendas para ajudar na reconstrução, em múltiplas áreas, do território gaúcho. Essa janela permitirá a deputados e senadores corrigirem o erro que cometeram ao negligenciar a questão ambiental quando destinaram suas emendas ao Orçamento de 2024. “Para prevenir tragédias como a do Rio Grande do Sul, é de especial importância a elaboração de planos de manejo de águas pluviais e a criação de diretrizes para gestão de risco”, diz Hernandez.
Obviamente, não é possível controlar previamente o volume de chuvas que cairá em determinada região, mas políticas de ocupação do solo e de contenção do crescimento desordenado de cidades e obras estruturantes para escoamento de águas podem diminuir o volume de danos à população. Um bom exemplo vem da China. Desde 2012, depois que várias cidades chinesas sofreram perdas humanas e materiais por causa de enchentes, ao longo do país tem se adotado o conceito de “cidades-esponjas”, que reúne medidas de baixo impacto, como parques que funcionam como bacias de retenção e detenção das águas, pavimentos permeáveis, praças alagáveis, telhados verdes e trincheiras de infiltração ao longo de estradas e ruas. Com 21 milhões de habitantes, a capital, Pequim, ainda complementa suas medidas com um robusto sistema de previsão e de alerta precoce e estratégias tradicionais, como piscinões e tanques com sistemas de bombeamento. Em países que têm terremotos como rotina, como Taiwan, investimentos em edifícios resistentes a tremores e planejamentos em alertas e respostas a abalos sísmicos ajudaram a população a enfrentar no mês passado o maior terremoto em 25 anos. Milhares de vidas foram poupadas.
A resposta à tragédia climática no Rio Grande do Sul, que demanda eficiência administrativa, também tem um componente eleitoral. Lula fez questão de marcar diferença com o antecessor Jair Bolsonaro, que venceu o petista no estado em 2022, ao lembrar que o capitão andava de jet ski em Santa Catarina enquanto a Bahia sofria com enchentes. Antes de embarcar para Porto Alegre no último dia 5, o presidente telefonou pessoalmente para Arthur Lira e Rodrigo Pacheco para convidá-los a sobrevoar a região das enchentes. Ele também chamou o presidente em exercício do Supremo Tribunal Federal (STF), Edson Fachin, e o ministro Bruno Dantas, que comanda o TCU, tribunal responsável por vistoriar o uso do dinheiro público. Foi uma forma de mostrar união entre os poderes na ajuda aos gaúchos e de diluir responsabilidades. O presidente sabe que, a depender do empenho do governo, pode colher louros ou impopularidade.
No deslocamento de pouco mais de duas horas entre Brasília e Porto Alegre, Lula prometeu auxílio irrestrito e defendeu a urgência de diferentes frentes de socorro às vítimas das chuvas, mas não passou despercebido entre os passageiros o fato de ele ter tido tempo também para, nas conversas a bordo, discorrer até sobre riscos ao STF com um eventual fortalecimento da direita no Congresso após as próximas eleições. A questão eleitoral não sai da cabeça do presidente e dos políticos em geral. Até aí, nada demais. O problema é quando as conveniências deles prevalecem sobre as necessidades da população e contribuem para desastres em múltiplas áreas, prejuízos materiais e mortes. O roteiro serve de aviso: a tragédia no Rio Grande do Sul se repetirá por lá e em outros lugares caso as autoridades continuem a se mexer apenas depois do fato consumado.
Publicado na revista Veja de 10 de maio de 2024, edição nº 2892