Eleita presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a ministra Cármen Lúcia, de 70 anos, vai substituir Alexandre de Moraes no comando da Corte em junho e será responsável pela eleição municipal de 2024.
Um dos principais desafios da magistrada é o de liderar a Justiça Eleitoral na missão de manter a normalidade do pleito diante do fenômeno da desinformação na internet.
A ameaça, que já se fez presente nas últimas eleições, terá como agravante neste ano a popularização de ferramentas de inteligência artificial (IA), que podem potencializar os efeitos de notícias falsas no eleitorado.
Para isso, o TSE aprovou uma inédita regulamentação do uso da IA e aumentou a responsabilidade das chamadas big techs. A criação das normas foi comanda pela própria Cármen Lúcia.
A ministra tem relatado preocupação com os efeitos da desinformação no debate público e da concentração de informações nas redes sociais. Em evento em São Paulo, na terça-feira (7), disse temer por um “coronelismo digital”.
“Vivemos uma situação completamente inédita que é o grande volume de dados que são passados nos nossos aparelhos. Eu temo pela criação de um novo coronelismo no mundo, o coronelismo digital”, declarou.
Outro ponto que é bastante reforçado pela ministra é o respeito às mulheres e cobranças públicas para maior participação feminina na política e nos espaços de poder.
A magistrada tem defendido sua posição em julgamentos no TSE sobre descumprimento à cota de gênero de partidos, por exemplo.
Em um dos casos, em abril, discutiu com Nunes Marques. “Não somos coitadas. Não precisamos de empatia, precisamos de respeito”, declarou, em resposta à fala do colega que pediu “empatia” a mulheres com candidaturas suspeitas de terem sido fraudadas pelo partido Cidadania, em Itaiçaba (CE).
“Nós, mulheres, sabemos o que é ser tratada em desvalor. Não é desvalorizando e achando que mulheres são coitadas, porque não somos. Somos pessoas autônomas, em condições iguais a dos homens e, por isso, quando se fala que o partido abandonou, como outrora se diz, que o marido abandonou a coitada. Não tem coitada não. Nós não queremos ser coitadas, queremos ser cidadãs”, disse a ministra na ocasião.
Essa será a segunda passagem de Cármen Lúcia no comendo da Justiça Eleitoral. A ministra já presidiu o TSE entre abril de 2012 e novembro de 2013. Foi a primeira mulher a comandar a Justiça Eleitoral, 80 anos depois da sua criação e da permissão para o voto feminino no Brasil.
Mudanças
O pleito municipal de 2024 será o primeiro desde os atos de 8 de janeiro. O episódio que levou à invasão e depredação das sedes dos Três Poderes decorreu de manifestações que, entre outras pautas, pediam golpe de Estado e rejeitavam o resultado da eleição de 2022.
O antecessor de Cármen no posto, Alexandre de Moraes, se notabilizou pela condução da última eleição em cenário conflagrado pela polarização, violência política e com críticas infundadas à urna eletrônica.
Ao anunciar a eleição da ministra para substituí-lo, na terça-feira (7), Moraes disse ter “grande alegria e honra” de passar o posto para a magistrada.
“A Justiça Eleitoral estará em boas mãos. A democracia brasileira estará em boas mãos e, repito, a tranquilidade, a felicidade e a honra que tenho de daqui pouco menos de um mês transferir o caro a Vossa Excelência”, declarou.
A saída de Moraes da Corte levará o ministro André Mendonça a assumir como integrante titular do TSE. Essa troca tende a afetar o encaminhamento de casos sensíveis, com um fortalecimento da ala que costuma não se alinhar aos votos de Moraes e que defende uma menor intervenção da Justiça Eleitoral nas questões que são levadas ao tribunal. No momento, alinham-se a essa corrente Nunes Marques, Raul Araújo e Isabel Gallotti.
O horizonte de julgamentos no TSE tem ao menos dois casos de repercussão que envolvem pedidos de cassação de mandatos: os dos senadores Jorge Seif (PL-SC) e Sergio Moro (União-PR).
A análise do primeiro caso foi adiada para aprofundar a coleta de provas. Já o processo do ex-juiz da Lava Jato foi pautado para quinta-feira (16).
Também ainda tramitam no TSE ações que pedem a inelegibilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) por atos na campanha de 2022. Os casos pendentes tratam de desinformação e uso da máquina pública para se promover.
Bolsonaro está inelegível até 2030 por duas condenações decididas em 2023 pelo TSE: pela reunião com embaixadores em que atacou o sistema de votação e pelo uso político das comemorações ao Bicentenário da Independência.
Desinformação
O combate à disseminação de notícias falsas nas redes sociais foi uma das principais bandeiras do TSE nos últimos anos. Essa preocupação deve seguir no radar do tribunal.
Caberá a Cármen Lúcia comandar o recém-lançado Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia (Ciedde). Trata-se de uma iniciativa de Moraes já no final da sua gestão.
Inaugurado em março, o centro vai reunir órgãos como Ministério da Justiça, Procuradoria-Geral da República e Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e representantes das plataformas de redes sociais.
Conforme disse à CNN a professora da Universidade de Brasília (UnB) Fernanda De Carvalho Lage, pesquisadora em Direito e Inteligência Artificial, o TSE é um “tribunal referência” sobre inovação tecnológica, além de ter um “aparato normativo e a expertise técnica para zelar pela lisura e legitimidade das eleições”.
A especialista disse que Cármen Lúcia deverá reforçar pautas como o combate ao discurso de ódio, com uma sensibilidade para a questão da igualdade de gênero na política.
“Conforme a ministra já afirmou em outras oportunidades, os ataques feitos às mulheres têm conteúdo sexista e diverso do feito aos homens, geralmente associados a conteúdos éticos ou laborais”, disse.
Lage considera “inovadora” a resolução aprovada pela Corte sobre propaganda eleitoral e conteúdos postados na internet, e disse que as normas que tratam da desinformação estão em “consonância com padrões internacionais”, como os definidos na União Europeia.
“A atuação da ministra na condução das audiências públicas para a edição das Resoluções mostrou que ela visa combater que a propaganda eleitoral seja um vetor de desinformação, exigindo um nível de transparência para apoiar um debate político aberto e justo. Além disso, busca combater a manipulação da informação e as interferências na decisão do eleitorado”, afirmou.
Regras
O tema da desinformação tem sido enfrentado de diversas formas pela Justiça Eleitoral, que também foi se adaptando às demandas que a realidade exigia.
No pleito de 2022, os ministros aprovaram uma proposta de Moraes que aumentou os poderes da Corte eleitoral sobre conteúdos publicados nas redes sociais. O texto endureceu o combate a notícias falsas e deu mais agilidade ao processo de retirada de postagens com informações falsas que pudessem comprometer o processo eleitoral.
Já para 2024, o TSE preparou uma robusta regulamentação do tema. Cármen coordenou três dias de audiências públicas em janeiro para colher sugestões de especialistas e da sociedade civil. Ela foi a responsável por elaborar as resoluções que vão vigorar durante as eleições.
Em fevereiro, as regras foram aprovadas. A resolução que trata da propaganda eleitoral tratou de fixar as primeiras obrigações sobre o uso de inteligência artificial e trouxe mudanças no regime de responsabilidade das plataformas digitais, conhecidas como “big techs”.
Especialistas ouvidos pela CNN disseram que o TSE avançou em alguns pontos, como o que prevê a cassação do candidato que fizer uso irregular da IA e proíbe o uso do “deep fake”.
O deep fake permite substituir o rosto de pessoas em vídeos ou simular falas, com o mesmo tom de voz e com a sincronização com o movimento dos lábios.
Há divergências sobre a ampliação da responsabilidade das plataformas, com críticas ao caráter genérico do texto e dúvida sobre como funcionará a moderação de conteúdo pelas redes.
Um dos desdobramentos dessa nova norma foi a decisão do Google de proibir a veiculação de anúncios políticos no Brasil para as eleições municipais de 2024. De acordo com a empresa, a decisão se baseia na nova resolução do TSE.
A norma traz uma série de regras sobre veiculação de publicidade de candidatos e partidos e estabelece que as plataformas digitais devem manter um repositório de anúncios para acompanhamento da Corte em tempo real do conteúdo.
Também devem ser fornecidos os valores, os responsáveis pelo pagamento e as características dos grupos populacionais que compõem a audiência da publicidade contratada.
Diálogo
Para o advogado Fernando Neisser, mestre e doutor pela USP e membro fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), a ministra Cármen deve ter como marcas na gestão uma abertura maior para a sociedade civil, com um perfil mais colaborativo e de maior diálogo com atores importante, como as big techs.
“Acho que a gente vai ter talvez um pouco na linha do que vimos com os ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin, quando presidiram [o TSE], na tentativa de trazer as plataformas que se comprometem com as obrigações, para de alguma forma participar do processo”, afirmou. “O ministro Alexandre tem um perfil de um enfrentamento mais duro e público, e acho que a ministra Cármen tem postura de diálogo”.
Para o especialista, a magistrada mostrou uma “capacidade muito grande de articulação” com a sociedade ao relatar as resoluções do pleito.
Segundo Neisser, o ponto de preocupação para a eleição são as deep fakes geradas por IA, principalmente conteúdos falsos em áudio e que são distribuídas por aplicativos de mensagens, como o WhatsApp.
Uma outra marca destacada da ministra, de acordo com o advogado, é a atenção dada à questão de gênero. O fator tem relevância para o momento, já que eleições municipais costumam ter mais casos de fraudes à participação feminina.
Conforme Neisser, o TSE adotou regras mais claras que permitem identificar com maior rapidez irregularidades na distribuição de recursos e de tempo de TV. Isso pode acelerar o ajuizamento de ações que pedem cumprimento das regras de incentivo à participação da mulher, avalia.
Para a advogada eleitoralista Ezikelly Barros, mestra em direito constitucional, a segunda passagem da ministra Cármen na presidência do TSE deverá ter maior ênfase a iniciativas para aumentar a participação feminina nos espaços de poder.
“Acredito que, em termos de combate às fakes news, ela deve ser dar seguimento aos trabalhos do ministro Alexandre de Moraes, até porque já está muito em cima da eleição para qualquer inovação”, afirmou.
O advogado e membro da Abradep Guilherme Barcelos disse à CNN que a grande preocupação da eleição será a desinformação e os novos usos da inteligência artificial.
“Temos uma campanha com período muito curto, de 45 dias, que traz desafios para a Justiça Eleitoral em contraponto à velocidade de disseminação da informação ou da desinformação”, afirmou.
Para ele, as resoluções têm mecanismos para dar conta do fenômeno — se não de eliminá-lo por completo, de pelo menos amainar o problema.
“Agora, se isso vai ser eficaz ou não, me parece que só a dinâmica da campanha vai dizer”, afirmou. “Para trazer um controle mínimo sobre esse processo, me parece que temos alguns mecanismos que poderão ser eficazes”.
O especialista vê como menos presente os temas que insuflaram o pleito de 2022, como questionamentos às urnas e movimentos golpistas.
“O 8 de janeiro já passou como evento, e está entregue à jurisdição competente. Quanto à eleição de 2022, de igual modo houve ali um problema grande, uma polarização excessiva, acho que a gente passou longe dos mínimos critérios de natureza civilizatória, avançamos muito o sinal. E esse caldo de cultura me parece que ainda está presente. E talvez, irá nortear essa eleição de 2024, ainda que esteja muito mais diluído, até por se tratar de eleição municipal.