A derrubada do veto presidencial de Jair Bolsonaro ao Projeto de Lei 827/2020 pelo Congresso Nacional é condição para proteção à vida e cumprimento dos direitos assegurados na Constituição Federal, sublinha a Campanha Despejo Zero. Após lento trâmite pelas casas legislativas, o Projeto de Lei que suspende medidas judiciais ou administrativas de despejo ou remoções de ocupações coletivas de imóveis públicos e privados até o fim de 2021, devido à pandemia, foi vetado por Bolsonaro em 05 de agosto. Como determina o regimento da Câmara – instância de início de tramitação do Projeto, a proposta retorna ao Legislativo e o veto consta na pauta do Congresso desta segunda-feira (27).
Em carta aberta ao Congresso Nacional lançada na sexta-feira (24), a rede de mais de 200 organizações e movimentos populares urbanos e rurais constituída no início da pandemia destaca que “a dramática situação da covid-19, que já vitimou quase seiscentas mil pessoas desde março do ano passado, evidencia a necessidade da derrubada do veto presidencial, em honra de todas as vidas perdidas e daquelas em franco perigo, o que perpassa a defesa de seus direitos básicos e fundamentais assegurados constitucionalmente e, por conseguinte, de sua efetiva aplicação a todos e todas, sobretudo aqueles em situação de vulnerabilidade”, aponta um trecho. O coletivo tem convocado a população a somar na pressão aos parlamentares pela derrubada do veto presidencial.
Protocolado em março de 2020, início da crise epidemiológica no Brasil, o PL 827/20 tem como orientação assegurar as condições para a permanência das pessoas em casa, visto que o isolamento é reconhecido como uma das medidas mais seguras para a contenção do vírus. No entanto, o Projeto de Lei de autoria do deputado federal André Janones (AVANTE/MG), com coautoria das deputadas federais Natália Bonavides (PT) e Professora Rosa Neide (PT) sofreu diversas baixas ao longo do rito legislativo de mais de um ano e meio. Além da lentidão na apreciação da proposta pelas casas e o veto presidencial, a majoritária bancada ruralista no Senado articulou a aprovação de uma emenda que suprimiu a suspensão dos despejos rurais na redação do PL 827/2020. Deste modo, o texto que retorna ao Congresso Nacional compreende apenas a realidade urbana.
“Este projeto já deveria ter sido aprovado no ano passado, conjuntamente com uma série de ações no sentido de evitar violações de direitos humanos durante a pandemia. Milhares de famílias foram despejadas pela omissão daqueles que deveriam ser os primeiros a defenderem seus direitos. Não podemos aceitar mais nenhuma remoção no Brasil, em especial enquanto ainda houver pandemia”. Destaca o coordenador da Comissão Direito à Cidade do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e Confederação Nacional das Associações de Moradores (Conam), Getúlio Vargas Júnior.
A preocupação apontada pelo integrante da Campanha Despejo Zero em não acentuar um contexto de vulnerabilidade social com novos despejos dialoga com uma realidade já instalada: de 01 de março de 2020 a 17 de agosto mais de 19.875 famílias sofreram despejos ou remoções coletivas em áreas urbanas e rurais e cerca de 93.485 estão atualmente ameaçadas, de acordo com levantamento da Campanha.
Ainda que alguns estados tenham aprovado leis de suspensão de despejo, como Pernambuco, e municípios, como Ribeirão Preto (SP), e a pressão popular tenha contribuído para a aprovação da Recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) 90/2021, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828/2021 que tratam de mesmo teor, os anúncios de novos despejos e ameaças são cotidianos. Na manhã desta segunda-feira, as 56 famílias residentes na Ocupação Beira-Mar, em Goiânia (GO), sofreram um violento despejo forçado. Com aparato militar da Guarda Municipal e Polícia Militar a Prefeitura realizou o despejo sem mandado judicial ou ordem administrativa. Não houve também nenhuma notificação prévia das famílias, de acordo com a Campanha.
Argumentos de má fé
No veto, Bolsonaro argumentou que a implementação do Projeto de Lei “daria um salvo conduto para os ocupantes irregulares de imóveis públicos” que, segundo o Presidente da República, “frequentemente agem em caráter de má fé”. Ele ainda aponta que a medida “geraria um ciclo vicioso, pois mais famílias ficariam sem fonte de renda e necessitariam ocupar terras ou atrasar pagamentos de aluguéis”.
Os argumentos são contestados pela assessora jurídica da Terra de Direitos e integrante da Campanha, Daisy Ribeiro. “O PL tem exceções expressas sobre o caso de quem vive unicamente do aluguel. Na verdade, o PL interrompe o “ciclo vicioso” de famílias que sofrem despejo atrás de despejo, por impossibilidade de arcar com o aluguel”, destaca.
“De má-fé é a postura do governo. O que vemos são pessoas que, por absoluta necessidade, ocupam áreas abandonadas para fazer valer a função social destes espaços e viabilizar sua moradia. Enquanto isso, o governo descumpre suas obrigações básicas de garantir direitos e proteger a vida da população”, complementa ela. Outro argumento contestado pela Campanha e presente no veto é o de que a proposta, em vigor, estimularia ocupações. No entanto, a proposta delimita que a suspensão é válida apenas para áreas ocupadas antes de 31 de março de 2021.
Atento aos impactos que se estendem para além do período da pandemia, a proposta legislativa estabelece a necessidade de realização de audiências de mediação com a participação do Ministério Público e da Defensoria Pública, bem como de inspeção judicial nas áreas em litígio.