Os deputados federais do Nordeste foram os mais leais ao governo do presidente Lula da Silva (PT) nas votações do plenário da Câmara dos Deputados em 2023, enquanto os representantes do Centro-Oeste e do Sul foram os mais oposicionistas, mostra levantamento de André Shalders, do Estadão. Piauí, Bahia e Maranhão formam o “top 3″ dos Estados mais governistas, enquanto Mato Grosso, Santa Catarina e Rondônia foram os que mais votaram contra o governo.
Os votos dos deputados reproduzem, de forma quase idêntica, o mapa eleitoral do segundo turno da disputa presidencial de 2022: Piauí, Bahia e Maranhão são também os três Estados onde Lula venceu por maior margem o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
A divisão regional se mantém dentro dos partidos. Ou seja, deputados da mesma sigla foram mais ou menos governistas a depender do perfil do reduto eleitoral do Estado de onde vêm. No Republicanos, por exemplo, os pernambucanos votaram com o governo em 90,2% das ocasiões. Já os gaúchos seguiram o governo em só 50,4% das votações. A mesma coisa no MDB: a taxa de governismo dos pernambucanos da sigla foi de 96%; já a dos gaúchos ficou em 61%. Até dentro do PL, partido de Bolsonaro, impera a mesma lógica. O representante do partido no Sergipe, Ícaro de Valmir, acompanhou o governo em 80% das votações de que participou. Já os dois deputados do PL no Mato Grosso do Sul foram governistas em apenas 20% das vezes.
A mesma divisão já é visível em 2019, primeiro ano do governo de Bolsonaro, mas com sinal trocado: na época, os deputados do Sul e do Centro Oeste foram os mais governistas, e os nordestinos foram os que menos apoiaram o governo do capitão da reserva. Assim como acontece agora com Lula, o mapa dos votos no plenário da Câmara seguiu o resultado do segundo turno das eleições de 2018, quando Bolsonaro derrotou o atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT). A clivagem se manteve ao longo dos anos de Bolsonaro no poder (2019-2022).
Estados nordestinos estão entre os mais beneficiados por algumas políticas do terceiro governo Lula, como o perdão de dívidas de usuários do Minha Casa, Minha Vida. No sistema bicameral, adotado no Legislativo brasileiro, os deputados representam os interesses da população, enquanto os senadores são considerados representantes dos Estados da federação.
Segundo especialistas e políticos ouvidos pelo Estadão, a cisão ideológica entre os Estados brasileiros se tornou mais forte nos últimos anos, com o acirramento da polarização entre direita e esquerda e o advento das redes sociais. Incentivos como a cobrança de governadores e a vigilância dos eleitores nas redes acabam sendo até mais importantes para os deputados do que a orientação dos líderes das bancadas. E quem se afasta do figurino com que foi eleito é punido de forma implacável. Os congressistas criaram até um termo para isso: “efeito Joice”. A referência é à ex-deputada Joice Hasselmann, que teve 1.078.666 votos em 2018 mas não se reelegeu em 2022, após romper com Bolsonaro.
Em 2023, o governo Lula conseguiu aprovar várias medidas importantes no Congresso. Os parlamentares quase deixaram vencer a medida provisória que reorganizou o governo, mas ela acabou aprovada, em junho. Câmara e Senado Aprovaram o voto de qualidade da Receita no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf); o novo arcabouço fiscal, que substituiu o antigo teto de gastos; a taxação dos fundos offshore e a reforma tributária, em dezembro. O governo também sofreu algumas derrotas relevantes, como a derrubada do veto de Lula ao marco temporal das demarcações de terras indígenas e a anulação de trechos de decretos presidenciais que mudaram o marco legal do saneamento básico.
Polarização política se aprofundou no Brasil em 2018
O jornalista Thomas Traumann é coautor do livro Biografia do Abismo (Harper Collins, 2023), sobre a polarização política no País. Segundo ele, o acirramento ideológico se intensificou no Brasil nos últimos seis anos. “A partir de 2018 é que as pessoas passam a levar em conta não só questões econômicas, como mais Estado, menos Estado. Passam a ser as coisas do cotidiano. Se a pessoa vai ter direito a se vacinar ou não, se o filho vai ter aula de educação sexual ou não. São coisas que mexem com a forma como elas entendem a vida”, diz.
“Isso, obviamente, tem aspectos muito ruins. Porque significa que elas continuam o acirramento (político da época da eleição) no dia a dia (…). A vida vira uma eleição permanente. Agora, tem uma coisa que não é necessariamente ruim: os deputados são pressionados a manter um discurso similar ao que os elegeu. Se foi eleito num Estado de maioria pró-Lula, ele é pressionado a ser pró-Lula também. E vice-versa”. Deputados menos consistentes ideologicamente, ou que não votam conforme a visão dos eleitores tendem a não se reeleger neste contexto, diz Traumann.
O deputado Eduardo da Fonte (PP-PE) diz que a orientação dos líderes de bancada não têm mais o mesmo peso de antigamente. “No Nordeste, o Lula é muito forte. Então, todos nós temos simpatia por Lula. Há cada vez menos fidelidade à orientação do partido, o que prevalece é o resultado da eleição (presidencial). Os deputados do PP que votam com o governo são aqueles que estavam com Lula, no Nordeste, na eleição. Os do Sul, do Sudeste, estavam com Bolsonaro”, diz ele. “É como se a eleição não tivesse acabado ainda”.
Há cada vez menos fidelidade à orientação do partido, o que prevalece é o resultado da eleição
Eduardo da Fonte (PP-PE), deputado federal
Eduardo da Fonte concorda com Thomas Traumann sobre a pressão das redes: é cada vez mais difícil para um político contrariar as opiniões do próprio eleitor e sair ileso. “É o que a gente chama de ‘efeito Joice’. Joice teve 1 milhão de votos numa eleição, em 2018, e quando foi para a eleição seguinte, teve 14 mil (na verdade, foram 13.679). Ela abandonou o eleitor dela, que era um eleitor bolsonarista, e definhou, eleitoralmente. É isso, e a pressão da internet, que impede os deputados de migrar para o governo”, diz o congressista.
O cientista político Rafael Cortez, da Tendências Consultoria, diz que a divisão se expressa de outras formas, como no surgimento de consórcios de governadores. “A política brasileira tem ganhado uma dimensão geográfica não desprezível. Haja vista, por exemplo, aquele movimento dos governadores do centro-sul (a criação do Consórcio de Integração Sul e Sudeste, o Cosud), para fazer frente ao Consórcio Nordeste. É mais uma tradução dessa dimensão geográfica que a política brasileira tem”, diz ele.
Em agosto passado, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), disse em entrevista ao Estadão que o Cosud deveria defender os interesses dos Estados do Sul e do Sudeste na reforma tributária, em contraposição ao Norte e ao Nordeste. “Dada a resiliência do conflito político no Brasil, é bem possível que isso (divisão geográfica) permaneça (nos próximos anos)”, diz Rafael Cortez.
Reportagem recente do Estadão mostrou que as nomeações dos ministros André Fufuca (Esportes) e Silvio Costa Filho (Portos e Aeroportos) contribuiu pouco para trazer votos das bancadas dos partidos deles para o governo – um resultado um pouco melhor foi conseguido no União Brasil, com a troca de Daniela Carneiro por Celso Sabino (Turismo). Fatores como o aumento das emendas parlamentares nos últimos anos corroeram o valor dos ministérios como moeda de troca entre Executivo e Legislativo, segundo especialistas.
As informações desta reportagem foram compiladas a partir da estrutura de Dados Abertos da Câmara. Foram consideradas algumas centenas de votações nominais no Plenário da Casa, nas quais houve orientação do líder do governo, o deputado José Guimarães (PT-CE). Este tipo de levantamento é útil para proporcionar uma visão geral sobre o comportamento de bancadas, Estados e deputados individuais. É usado rotineiramente por consultores, lobistas, partidos e pelo próprio governo, mas possui a limitação de equiparar votações cruciais com outras menos importantes.