A permissão para que seja celebrado acordo de colaboração premiada em ação de improbidade administrativa deveria ser dada pelo Poder Legislativo, e não pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Em respeito ao princípio da legalidade, a corte não deveria ampliar o uso da delação por meio de analogia, como fez em decisão do mês passado, no entendimento de estudiosos do assunto ouvidos por Sérgio Rodas, da revista eletrônica Consultor Jurídico.
A delação premiada existe no Brasil desde as Ordenações Filipinas, de 1603. O instituto é previsto em diversas normas criminais, como o Código Penal, a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990), a Lei de Proteção de Vítimas e Testemunhas (Lei 9.807/1999) e a Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), e já aliviou as punições de muitos contraventores confessos, desde Joaquim Silvério dos Reis (que entregou Tiradentes) até Roberto Jefferson (que denunciou o caso do “mensalão”).
Contudo, apenas com a Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013) a medida foi expressamente regulamentada no país, com o nome de “colaboração premiada”. Com isso, as delações deixaram de ser feitas de modo informal, e com a redução da pena dependente da decisão do juiz, e passaram a ser formalizadas em contratos com cláusulas detalhando todos os benefícios e as condições necessárias para obtê-los.
A finada “lava jato” alçou as delações a um patamar de importância jamais visto no Brasil. O caso, que começou com suspeitas de lavagem de dinheiro por meio de um posto de gasolina em Brasília, cresceu por causa dos acordos do ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa e do doleiro Alberto Youssef — eles foram os primeiros a mencionar irregularidades na estatal.
A partir dali, diversos outros investigados resolveram colaborar com a Justiça, seja pela possibilidade de receber uma punição mais branda — já que a regra era ser condenado —, seja por medo de ficar preso preventivamente por tempo excessivo, prática corriqueira da “cultura lavajatista”.
Grande parte dos acordos de colaboração premiada da “lava jato” abrange ações de improbidade administrativa. Nesses acordos, o Ministério Público Federal se compromete a não ajuizar ações do tipo contra os delatores. Nos processos em curso, o órgão concorda em pedir que as sentenças só tenham efeitos declaratórios, sem a aplicação de penas.
Decisão do STF
A discussão sobre se o acordo de colaboração premiada pode ser feito em ação de improbidade administrativa chegou ao Supremo Tribunal Federal, que declarou a constitucionalidade da medida em julgamento concluído em 30 de junho.
O relator do caso, ministro Alexandre de Moraes, apontou que, apesar da inexistência de norma expressa autorizando a colaboração premiada no âmbito do combate à improbidade, as normas do microssistema de defesa do patrimônio público permitem a adoção da medida.
O parágrafo 1º do artigo 17 da Lei 8.429/1992, em sua redação original, proibia transação, acordo ou conciliação nas ações de improbidade administrativa. Para Alexandre, porém, o dispositivo deve ser interpretado no sentido de evitar que haja indevida disposição da ação de improbidade, e não como empecilho para a celebração de acordo de colaboração premiada. “Esse entendimento não só se ajusta ao microssistema de defesa do patrimônio público como, principalmente, privilegia a vontade da Constituição Federal, que estabeleceu como prioridade o combate à corrupção, à ilegalidade e à imoralidade no seio do poder público”, disse o ministro.
De qualquer forma, ressaltou o relator, o parágrafo 1º do artigo 17 da Lei 8.429/1992 foi reformado pela lei “anticrime” (Lei 13.964/2019), passando a prever expressamente a possibilidade de celebração de acordo na ação civil pública por ato de improbidade administrativa, com o nome de acordo de não persecução cível (ANPC).
Seguindo o voto de Alexandre, o Supremo firmou a seguinte tese de repercussão geral (Tema 1.043):
É constitucional a utilização da colaboração premiada, nos termos da Lei 12.850/2013, no âmbito civil, em ação civil pública por ato de improbidade administrativa movida pelo Ministério Público, observando-se as seguintes diretrizes:
1) Realizado o acordo de colaboração premiada, serão remetidos ao juiz, para análise, o respectivo termo, as declarações do colaborador e cópia da investigação, devendo o juiz ouvir sigilosamente o colaborador, acompanhado de seu defensor, oportunidade em que analisará os seguintes aspectos na homologação: regularidade, legalidade e voluntariedade da manifestação de vontade, especialmente nos casos em que o colaborador está ou esteve sob efeito de medidas cautelares, nos termos dos §§6º e 7º do artigo 4º da referida Lei 12.850/2013;
2) As declarações do agente colaborador, desacompanhadas de outros elementos de prova, são insuficientes para o início da ação civil por ato de improbidade;
3) A obrigação de ressarcimento do dano causado ao erário pelo agente colaborador deve ser integral, não podendo ser objeto de transação ou acordo, sendo válida a negociação em torno do modo e das condições para a indenização;
4) O acordo de colaboração deve ser celebrado pelo Ministério Público, com a interveniência da pessoa jurídica interessada e devidamente homologado pela autoridade judicial;
5) Os acordos já firmados somente pelo Ministério Público ficam preservados até a data deste julgamento, desde que haja previsão de total ressarcimento do dano, tenham sido devidamente homologados em juízo e regularmente cumpridos pelo beneficiado.
Atuação legislativa
O Supremo legislou ao permitir a celebração de acordo de colaboração premiada em ação de improbidade administrativa, avalia o advogado Geraldo Prado, investigador do Instituto de Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e do Ratio Legis — Centro de Investigação e Desenvolvimento em Ciências Jurídicas da Universidade Autônoma de Lisboa.
Segundo ele, a colaboração premiada, tal como prevista na Lei das Organizações Criminosas, não tem o mesmo âmbito normativo de um acordo sobre a pena, como o plea bargain dos Estados Unidos, porque exige comportamento processual de cooperação. O compromisso aplica-se estritamente à investigação e ao processo criminal relacionado a organizações criminosas, criminalidade transnacional e organizações terroristas, conforme o artigo 1º da lei, destaca Prado, que também é professor visitante da Universidade Autônoma de Lisboa.
Além disso, ressalta ele, a colaboração premiada se submete à reserva legal, em razão de seus efeitos penais (como perdão judicial, redução da pena privativa de liberdade ou restrição de direitos). Ou seja, o mecanismo é incompatível com a discricionariedade judicial, o estabelecimento de benefícios não previstos na norma. O instituto ainda tem efeitos processuais limitados em relação a terceiros, uma vez que se trata de meio de obtenção de prova que se sujeita à cláusula do devido processo legal e ao contraditório judicial. No nível das fontes de prova, o potencial probatório da colaboração dirá respeito à notícia da existência de meios de prova.
“Por tudo isso, o acordo de colaboração, na forma da Lei 12.850/2013, medida excepcional no âmbito do sistema jurídico brasileiro, é cabível com exclusividade nas causas penais versando sobre organizações criminosas, criminalidade transnacional e organizações terroristas (artigo 1º do referido estatuto), e, portanto, não tem cabimento em processo de improbidade administrativa. O STF decidiu matéria que está sob estrita reserva de lei parlamentar (do Congresso Nacional). A observância do princípio da legalidade é condição de validade desse tipo de negócio jurídico”, opina Geraldo Prado.
O acordo de colaboração premiada só tem previsão legal para casos que envolvam organizações criminosas, reforça o advogado Gustavo Badaró, professor de Direito Processual Penal da Universidade de São Paulo. Portanto, a legislação não permite o emprego do mecanismo nos âmbitos cível e administrativo. O STF autorizou o uso do instituto em ações de improbidade administrativa por meio de analogia, avalia ele.
“Seria mais prudente que a autorização para o uso de colaboração premiada em ações de improbidade administrativa fosse feita pelo Legislativo, a quem compete legislar. Ao Supremo, compete prioritariamente julgar a análise de constitucionalidade de leis. Não é o caso, não há lei que preveja a medida. Então o Supremo supriu a lacuna por meio de analogia, pelo acordo de colaboração premiada de natureza penal. Embora caiba ao Judiciário suprir lacunas legais, isso costuma ocorrer em primeiro ou segundo grau. Não é papel prioritário do Supremo, cuja finalidade é ser guardião da Constituição Federal, atuar propondo analogias para suprir lacunas de leis infraconstitucionais”, analisa Badaró.
Amplo escopo
Por outro lado, o procurador da República Vladimir Aras, professor de Direito Processual Penal na Universidade Federal da Bahia, elogia a decisão do Supremo.
“É muito positiva a decisão, pois, sem inovar na ordem jurídica, reconhece a teia de consensos refilados por lei, acentua a importância das saídas negociadas como mecanismo de solução de conflitos e como mecanismo probatório em prol do Estado. Além disso, reforça a interação entre acordos de diferentes campos, com proveito para a defesa e maior segurança jurídica quando a mesma pessoa é suspeita da prática de crimes, atos de improbidade, atos lesivos à administração ou outras condutas ilegais.”
Aras lembra que o Superior Tribunal de Justiça decidiu que acordos de colaboração premiada podem ser empregados em qualquer crime cometido em concurso de pessoas, não sendo necessária a presença de uma organização criminosa (HC 582.678).
O procurador também aponta que a legislação brasileira prevê diversos tipos de acordos civis e administrativos. Entre eles, os acordos de leniência da Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), em casos de atos lesivos à administração pública; os compromissos em situações de irregularidades contra o sistema financeiro, o mercado de capitais e a ordem econômica, a serem firmados pelo Banco Central, pela Comissão de Valores Mobiliários e pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), respectivamente; e os termos de ajustamento de conduta da Lei de Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985), para os ilícitos civis em geral. “Ou seja, o campo das soluções consensuais é amplo nos processos penal, civil e administrativo, com a coexistência de diferentes acordos.”
Acordo de não persecução cível
O ANPC, de certa forma, funciona como uma espécie de acordo de colaboração premiada para pessoas acusadas de atos de improbidade administrativa.
Inserido na Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992) pela lei “anticrime” (Lei 13.964/2019), e posteriormente alterado pela reforma da norma promovida pela Lei 14.230/2021, o ANPC pode ser firmado quando a solução consensual for a medida mais viável para acelerar a devolução de valores desviados. O termo deverá promover o integral ressarcimento do dano ou a destinação à entidade estatal lesada da vantagem indevida obtida, ainda que oriunda de agentes privados.
“O acordo de não persecução cível atende de forma satisfatória ao propósito de proteção do patrimônio público, no tocante às pessoas acusadas de atos de improbidade administrativa, com a vantagem evidente de não violar a presunção de inocência ao restringir o raio de sua eficácia jurídica”, afirma Geraldo Prado.
Quando há pessoas físicas e jurídicas envolvidas nos mesmos fatos, o emprego simultâneo do ANPC e do acordo de colaboração premiada aumenta a segurança jurídica, opina Vladimir Aras. “A tese firmada pelo STF no tema da repercussão geral vai nessa linha, aproximando os institutos que, na verdade, têm uma mesma natureza: a de abreviar os conflitos, obter provas e melhorar a posição jurídica dos acusados”.
Gustavo Badaró ressalta ainda na revista ConJur, que os instrumentos têm o aspecto semelhante de gerar benefícios por meio de um ato de vontade dos acusados. Porém, o ANPC, diferentemente da colaboração premiada, não tem a finalidade de servir como meio de prova ou de obter meios de prova para processar e punir terceiros. Ou seja, o colaborador deve entregar terceiros que praticaram crimes, algo que não é exigido de quem firma ANPC.