Enquanto as negociações para o cessar-fogo em Gaza vacilam, o Catar continua a mediar outras disputas globais. O que torna esse pequeno Estado do Golfo, rico em recursos, tão essencial em negociações diplomáticas? Representantes dos governos de Rússia e Ucrânia não se reúnem desde os primeiros meses do início da guerra entre os dois países, em fevereiro 2022, quando as tropas russas invadiram a Ucrânia. Mas no fim de semana surgiram notícias de possíveis negociações a serem mediadas pelo Catar, país do Oriente Médio.
As reuniões teriam sido canceladas devido ao movimento das tropas ucranianas em Kursk, na Rússia. Mas a notícia em si poderia ser vista como um novo triunfo para o pequeno Estado do Golfo rico em gás.
Essa não seria a primeira vez em que o Catar se envolve em conflitos fora do Oriente Médio. O país ajudou a fechar acordos para libertar americanos presos no Irã, no Afeganistão e na Venezuela, além de devolver crianças ucranianas às suas famílias depois de terem sido levadas para a Rússia. O Catar também presidiu avanços diplomáticos entre o Sudão e o Chade, a Eritreia e o Djibuti, assim como um acordo de paz em Darfur em 2011.
Em 2020, o Catar ajudou a negociar com o grupo extremista Talibã a retirada dos EUA do Afeganistão. E, em novembro de 2023, os negociadores do Catar ajudaram a restabelecer o cessar-fogo temporário no conflito de Gaza.
Negociador indispensável
“O surgimento do Catar como um mediador importante elevou sua posição diplomática, transformando-o de um outlier regional em um ator crítico no cenário mundial”, diz à DW Burcu Ozcelik, pesquisador sênior do think tank britânico Royal United Services Institute. “Esse novo papel aumenta a influência de Doha, posicionando o país como um ‘parceiro para a paz’ indispensável na comunidade global.”
As razões pelas quais o Catar se estabeleceu como mediador do mundo foram bem documentadas. Ao superar seu peso em termos diplomáticos, o Catar quer estabelecer de forma independente sua própria segurança em uma região instável, segundo os analistas.
Forjar sua própria política externa – por exemplo, abrigando dissidentes e auxiliando grupos revolucionários e militantes – é também uma forma de competir com seu rival tradicional, os Emirados Árabes Unidos, e de se recusar a receber ordens da vizinha Arábia Saudita, que é muito maior, de acordo com o pesquisador Ali Abo Rezeg, em um artigo de 2021 publicado na revista acadêmica Insight Turkey.
Aposta em boas relações
Relacionamentos são fundamentais, e o Catar é conhecido por sua ampla e variada rede de contatos, tendo apoiado vários grupos muito diversos através do fornecimento de uma base, armas ou financiamento. Isso inclui o Talibã, a Irmandade Muçulmana no Egito, milícias líbias e revolucionários antigoverno na Síria, Tunísia e Iêmen durante a chamada “Primavera Árabe”.
Em 2012, o governo dos EUA, liderado por Barack Obama, pediu ao Catar que hospedasse a ala política do grupo militante Hamas, em vez de vê-la mudar-se da Síria para o Irã, onde teria sido muito menos acessível.
O Catar também mantém melhores relações – incluindo laços econômicos – com o Irã do que seus vizinhos, muitos dos quais consideram os iranianos como inimigos.
E o Catar tem hospedado os EUA na Base Aérea de al-Udeiddesde 2001. Atualmente, essa é a maior base dos EUA no Oriente Médio, com cerca de 10 mil soldados.
“O Catar definitivamente se beneficia disso, porque os governos do Ocidente e do Oriente, até certo ponto, o consideram um amigo muito útil”, explica Cinzia Bianco, especialista em países do Golfo no think tank Conselho Europeu de Relações Exteriores.
Por exemplo: no início de 2022, o presidente dos EUA, Joe Biden, nomeou o Catar como um “importante aliado não pertencente à Otan”, em parte devido ao seu papel na negociação da retirada do Afeganistão.
Ser capaz de ter empatia com todas as partes também ajuda. Os analistas dizem que, mesmo trabalhando em estreita colaboração com os americanos, os catarianos também têm sido mais pragmáticos em relação às organizações islâmicas na região, vendo-as como parte de movimentos políticos populares que não podem ser apagados ou evitados. Em alguns casos, isso tem ajudado. Aparentemente, membros do Talibã disseram que se sentiam mais confortáveis no Catar, que, segundo eles, entende todos os lados.
Neutralidade é prioridade
Os negociadores do Catar não têm necessariamente habilidades especiais, segundo Bianco. Eles também treinam para o trabalho. “Mas eu não diria que fazem mais do que os diplomatas que trabalham para outros governos, inclusive na Europa”, afirma. “Acho que se trata mais de uma atitude de tentar ser o mais neutro possível. Para eles, é de fundamental importância desempenhar esse papel [como mediadores], e isso significa que eles o colocam acima de qualquer outra coisa, inclusive da política interna e regional.”
A riqueza do Catar também tem um papel nisso, acrescenta Bianco. Seus recursos permitem que eles recebam participantes e trabalhem em várias crises ao mesmo tempo.
Isso também pode estar relacionado a uma cadeia de comando mais curta. “A capacidade do Ministério das Relações Exteriores [do Catar] de tomar decisões sem ser questionado ou examinado pelo público faz com que possam agir de forma decisiva”, disse Sultan Barakat, professor de políticas públicas da Universidade Hamad Bin Khalifa, no Catar, em texto de fevereiro para a Accord, publicação que analisa regularmente iniciativas internacionais de paz.
Ato de equilíbrio perigoso
No entanto, o fato de ser um negociador tão solicitado internacionalmente também pode ser desconfortável. Observadores apontam que as atuais negociações entre Hamas e Israel nas quais o Catar está envolvido são algumas das tratativas de “maior risco” já realizadas.
Políticos israelenses acusaram o Catar de ser um “lobo em pele de cordeiro” que financia o terrorismo. Políticos americanos pediram uma “reavaliação” do relacionamento com o Catar, caso o país não pressionasse mais o Hamas; em abril, apresentaram um projeto de lei que poderia cancelar o status do Catar como um importante aliado não pertencente à Otan.
Os catarianos rejeitaram todas as acusações, dizendo que não têm poder sobre o Hamas.
“Quando você interage com milícias armadas não-estatais que fazem coisas ruins, obviamente corre o risco de ter o dedo apontado para você e as pessoas dizerem que, de certa forma, você está validando esses grupos e lhes deu mais legitimidade ou acesso a recursos”, observa Bianco.
Ela diz que o argumento do Catar é: “Sim, nós temos esses laços, mas os usamos para o bem”.
Por mais imperfeito que seja o país, os especialistas argumentam que no momento o mundo precisa do Catar nesse papel.
“A humanidade pagou um preço alto por não ter se sentado e conversado entre si antes, durante as duas guerras mundiais”, diz à DW Rabih El-Haddad, diretor da divisão de diplomacia multilateral do Instituto de Treinamento e Pesquisa das Nações Unidas na Suíça.
“Hoje precisamos de partes que permitam que aqueles que estão em conflito conversem entre si e resolvam suas diferenças por meio de negociação, diplomacia e de acordo com o direito internacional”, frisa.