Após uma carreira como coach motivacional e hoje candidato a prefeito de São Paulo pelo PRTB, Pablo Marçal conseguiu operar com perfeição uma conversão entre dois tipos de influenciadores: o de conteúdo, que depende das publicações que produz, para o de personalidade, que é em si um produto. Essa é a avaliação do neurocientista Álvaro Machado Dias, professor livre-docente da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e sócio do Instituto Locomotiva, que estuda a influência no mundo digital, conforme reportagem de Guilherme Caetano, do jornal O Estado de S. Paulo.
Em entrevista ao Estadão, Dias separa os comunicadores digitais em dois grupos, o “influenciador por conteúdo” – um tipo de trabalho por vezes precarizado no qual o produtor depende do sucesso das publicações, especialmente no YouTube –, e o “influenciador por personalidade” – que nasceu do merchandising após o advento do rádio e evoluiu com a internet, e que consegue enriquecer via sua exposição, sobretudo no Instagram.
Marçal, no caso, produzia palestras motivacionais e hoje consegue migrar seu poder nas redes sociais para o mundo off-line.
Como o senhor tem visto a atuação de Pablo Marçal, alguém que forjou sua identidade no meio digital, agora na política, como candidato à Prefeitura de São Paulo?
Pablo Marçal é um exemplar, um representante do influencer por personalidade que fez a conversão de influencer por conteúdo. Ele cresce no domínio da motivação, que é o domínio mais privilegiado do ponto de vista do interesse do mercado de palestras hoje.
Pode explicar melhor isso?
A partir do fim dos anos 2000, com a universalização das redes sociais, surgiu uma nova forma de ocupação, uma espécie de trabalho precarizado: a produção de conteúdo para a internet. Isso gerou um perfil “profissional”, que é o influencer por conteúdo. É o sujeito que vive do valor do seu conteúdo e está atrelado a isso. Quando ele para de produzir, deixa de ser reconhecido e perde todo o valor acumulado.
Conforme a visibilidade social dos influencers por conteúdo foi se elevando, sobretudo em função do desejo dos mais jovens de atingirem esse impacto entre seus pares – porque isso é muito valorizado nos ambientes jovens –, a ocupação de influencer por conteúdo foi se tornando sobrevalorizada. Na prática, é uma ilusão. Um levantamento que a gente fez mostra que a maior parte dos influencers por conteúdo com 1 milhão de seguidores em média ganha pouco por publicação em sua página no Instagram.
Mas há influenciadores ganhando muito dinheiro com conteúdo.
Sim, porque em paralelo existe o influenciador por conteúdo do YouTube, que é diferente (do Instagram). O foco nesse caso está em vídeos longos e, portanto, tem um trabalho de roteiro mais aprofundado. Ele está inserido dentro de um ciclo de vida muito mais longo. A grande diferença entre o Instagram e o YouTube é o ciclo de vida do conteúdo para o influencer por conteúdo. O ciclo de vida do Instagram é muito curto, o que significa que as publicações não podem custar muito, em termos financeiros, à luz do que elas devem custar no YouTube, onde elas são quase perenes.
Porém, desde a universalização do rádio existem essas personalidades da comunicação que se tornam ricas porque fazem merchandising. Isso ganhou muita força a partir dos anos 1950, com a explosão na venda das televisões, e permanece até hoje. Essas figuras que são famosas fora da internet muitas vezes encontram um espaço da multiplicação do seu impacto social, e consequentemente do seu poder de monetização nas redes, nominalmente no Instagram. Esse tipo de influenciador ganha muita grana. Não é raro que um influenciador desses cobre R$ 50 mil ou R$ 60 mil por publicações em suas páginas.
A estratégia emergente hoje em dia é a da conversão do influenciador por conteúdo em influenciador desse segundo tipo, que é a personalidade famosa, ou seja o influenciador por personalidade. Essa é a estratégia buscada. Por quê? Porque o sujeito sai de uma lógica de ter que produzir conteúdo incessantemente e conteúdo viral, numa lógica de monetização na ordem dos poucos mil reais, para uma outra em que ele pode apresentar mais aspectos da sua vida, curiosidades que custam bem menos energia, do ponto de vista da produção (desse conteúdo), para uma rentabilização na ordem das várias dezenas ou até de centenas de milhares de reais por postagem. Na prática é sair de um ganho mensal de R$ 10 mil, R$ 15 mil, para um ganho mensal de R$ 500 mil, R$ 1 milhão. Essa é a estratégia que está sendo adotada para todos os lados.
E parece ser o caso de influenciadores como Marçal.
Exatamente. A novidade é um entendimento de que a cadeia de geração de valor está focada na convergência, na transição do influencer por conteúdo para influencer por personalidade. É isso que tendem a fazer. A chave nessa história é o tema da motivação. No domínio da motivação é uma visão de mundo, é uma proposta de ação, de um esquema comportamental, que traduz esse valor, de modo que o interesse sobre a pessoa em si mesma aumenta muito.
E como o senhor tem visto a ascensão de Marçal?
A ascensão do Marçal é a ascensão da “igreja da motivação”. A despeito do fato de proporcionalmente os evangélicos estarem crescendo entre os grupos religiosos brasileiros, as religiões estão em declínio em todo o Ocidente, inclusive no Brasil.
Mas a estratégia não é da família Bolsonaro, já estava na cartilha do Steve Bannon. O Obama foi o primeiro presidente do mundo digital, mas Trump foi o primeiro da guerrilha digital. Achar que Marçal inaugurou isso é querer ver novidade onde não tem. Bolsonaro foi eleito em 2018 com base nisso. A novidade hoje é a igreja da motivação
Esse declínio abre um vácuo naquilo que as pessoas entendem como discurso profundo, que talvez não seja tão profundo assim. Esse vácuo está sendo preenchido por discursos estoicos, da motivação, da vitória, da liderança, que são discursos laicos da transformação do sujeito. O Marçal não é uma novidade do ponto de vista de estratégia digital. Essa novidade foi a família Bolsonaro, em relação à segmentação de público em plataforma digital para as pessoas convergirem em voto.
Mas a estratégia não é da família Bolsonaro, já estava na cartilha do Steve Bannon. O Obama foi o primeiro presidente do mundo digital, mas Trump foi o primeiro da guerrilha digital. Achar que Marçal inaugurou isso é querer ver novidade onde não tem. Bolsonaro foi eleito em 2018 com base nisso. A novidade hoje é a igreja da motivação.
O senhor diz que esse vácuo foi preenchido por um discurso laico da transformação individual. Mas o discurso de Marçal tem um forte componente religioso.
Eu não acho. Se você assistir às palestras dele, você não encontra isso, e não é assim que ele formou sua base. O discurso de Marçal não traz uma teologia fundante da ação. O que ele traz é uma teleologia da intencionalidade. Para ele, o esforço, o mérito e a competência que são os vetores determinantes do sucesso. É diferente. No discurso neopentecostal, a teologia é central, porque afinal de contas o que conta é a vontade de Deus.