No palanque, falava homem atrás de homem sem que ninguém prestasse muita atenção. A multidão que semana passada lotava a praça central de Santander de Quilichao, no departamento colombiano de Cauca, viu o sol se pôr distraída porque não estava ali por eles. Estava ali para ver Francia Márquez, eleita neste domingo (19) a primeira mulher negra vice-presidente da Colômbia.
Bastou a protagonista da noite aparecer para o humor mudar e o público gritar: “viva Francia Márquez” e “o povo não se rende”. Ela sorri discretamente, com um vestido amarelo e uma bolsa de tricô pendurada nos ombros. Quando começou a falar, o clima já era outro:
— Dizem que os homens não fazem aborto, mas eu digo que sim. Na Colômbia, eles abortam cada vez que abandonam seus filhos. Eles abortam sua responsabilidade parental.
Alguns sorrisos amarelos são vistos nos palco, mas a multidão aplaude. Márquez não muda sua postura. Ela é uma mulher de 40 anos que, quando criança, queria se casar com um homem branco. Uma mulher que saiu de casa ameaçada de morte por defender sua terra, que teve dois filhos sozinha porque os pais das crianças sumiram. Uma mulher que limpou a casa dos outros para ter o que comer.
Francia Márquez é uma colombiana que nunca imaginou estar no topo e que viveu com medo por metade da sua vida. Que foi mãe aos 16 anos. É por isso que agora diz o que quer. E como quer.
— Eu não pedi para estar na política, mas a política se meteu comigo e agora nós estamos nos metendo com ela. Vocês não foram pagos para estar aqui, vieram porque quiseram. Aqui vocês têm sua filha e sua vice-presidente — disse ela, na reta final para o pleito deste domingo.
Francia Márquez quebrou todos os paradigmas do poder na Colômbia para ser eleita a primeira vice-presidente negra do país. Não apenas isso, mas é uma mulher negra de esquerda em um país onde a esquerda nunca governou. Uma posição que conquistou sozinha quando, em março, foi a terceira candidata mais votada nas primárias de todas as coligações que concorrem às eleições.
Ela teve quase 800 mil votos, o que obrigou Gustavo Petro, o presidente eleito, a escolhê-la como sua parceira de chapa. Não é segredo para ninguém que esse não era o plano original de nenhum dos dois ou que o relacionamento da dupla é fácil. Mas aqui estão.
‘Votamos por Francia’
Se Petro tivesse dado as costas para Márquez, teria perdido o voto de Lina Alegría. Por que os caucanos nunca importaram para ninguém, disse ela. E as caucanas, muito menos:
— Os homens alternativos são tão machistas quanto os de direita. Ela representa as mulheres, seu território. Isso ela dá a Petro. Nós votamos pela Francia — disse a jovem de 21 anos.
Alegría integra um grupo feminista chamado Insurrectas, criado no Pacífico colombiano, no departamento mais castigado pela violência, assolado pela pobreza e usado como narcocorredor. Cauca é um berço de miséria onde o Estado é mais um desaparecido para se somar às milhares de crianças que buscam por milhares de mães nas calçadas.
Mulheres como aquelas que arrumaram os cachos, vestiram-se com cores vivas e esperavam sob o sol quente por quem veem apenas como uma mulher negra, mas como “esperança de uma vida digna”. Talvez a primeira esperança que tenham encontrado até agora. Alguém que entendem quando diz:
— É doloroso ter que parir um filho, amamentá-lo e precisar enterrá-lo. Por que é levado embora, porque o assassinam, porque o fazem desaparecer.
No fim de semana da eleição, Márquez viajou à sua região, apesar de haver alguns territórios onde sua presença é proibida. Não pode chegar perto de La Toma, sua comunidade em Yolombó, na cidade de Suárez, onde nasceu há quatro décadas.
Ameaças de morte a obrigaram a se mudar em 2014, com dois filhos pequenos, quando já era uma líder social que enfrentava os empresários da mineração. Sua figura não deixou de crescer desde então, tampouco as ameaças. As cerca de 200 mulheres que a esperam em Santander aguardam com um misto de temor e emoção:
— A segurança não é muito boa por aqui, sabe? Mas a protegemos entre nós — disse sorrindo Yisel Carabali, com um vestido colorido.
Carabali não tinha pisado em sua terra natal até este momento, após ter fugir em dezembro devido às ameaças que custaram a vida de seu irmão. É uma médica ancestral, “chamada erroneamente de bruxa”, disse rindo, antes de afirmar com mais seriedade:
— Eles podem me matar, mas não vou com grupo nenhum.
Os únicos homens à vista, mesmo que na casa das dezenas, tentam passar despercebidos. O dia não é deles. Fazem parte de um enorme esquema de proteção que acompanha a vice-presidente eleita. São soldados do Exército com grandes armas, policiais com pistolas e os guardas indígenas e quilombolas com bastões de madeira, símbolo de autoridade nesses territórios.
Um policial protege Francia com um escudo quando ela sai do carro, um dos sete veículos que a acompanhavam naquele dia. Os demais fazem um corredor para protegê-la e, enquanto mulheres cantam e dançam, há um forte cheiro de incenso.
— Da resistência ao poder, até que a dignidade seja um hábito — disse ela.
Seu discurso direto, crítico e afiado cria conexões aqui e em outras partes do país, e sua ascensão política gerou uma onda de críticas. Em um país profundamente centralizador como a Colômbia, chegar ao poder de fora de Bogotá é difícil. E para fazê-lo de Cauca, é preciso quebrar a inércia.
A maioria de seus críticos aponta sua “falta de preparação”, enquanto alguns outros, mais barulhentos, incitam o racismo. Uma cantora se referiu a ela como King Kong, ao que Márquez respondeu enviando “um abraço ancestral para curá-la”.
O jornalista Daniel Samper Pizano escreveu que a “admira como uma mulher corajosa, líder popular, defensora do meio ambiente e guerreira capaz de superar os obstáculos que a Colômbia impõe aos negros, aos pobres e às mulheres. Sua vida e sua luta são exemplos inspiradores. Garantem boa-fé, honra e coragem, mas não preparação, experiência ou sabedoria. Mas não servem para administrar uma nação. Com isso não se governa. Menos ainda um país tão complicado como a Colômbia”. Márquez respondeu:
— Essas mensagens de “você não sabe, você não entente” … vocês não são meus pais. Não estamos pedindo permissão. Vocês escreveram a História e agora temos a oportunidade de criar as bases para uma nova História que permita aos nossos filhos viver em um lugar melhor.
Ela estudou Direito em Cali para acrescentar à sua luta como ativista ambiental — disse ter levado sete anos para terminar o curso “não porque não tinha habilidade, mas porque não tinha os recursos”. Em 2018, ganhou o Goldman Environmental Prize, o prêmio mais prestigioso do planeta para uma ambientalista. Dois anos depois, anunciam seu desejo de ser presidente da Colômbia, intenção que permanece intacta e que às vezes transparece, mesmo que inconscientemente, em seus discursos:
— Presidente também, mas primeiro vice-presidente — admitiu, rindo.
A segunda casa
Cerca de uma hora e meia de estrada separam separa Santander de Quilichao de Cali, caminho que Márquez precisou cruzar quando fugiu de noite com seus filhos para salvar suas vidas. A Comuna 21 da capital mundial da salsa tornou-se sua segunda casa e é ali, onde os taxistas avisam aos visitantes se tratar de uma área perigosa, que a candidata desembarcou no último domingo antes da eleição:
— Os políticos vêm aqui para comprar nossas consciência. Mas eu não preciso vir porque moro aqui. Essa é a minha segunda casa — disse ela à multidão, que aguardou por horas enquanto via grupos musicais e dançarinos no palco.
O coro respondeu: “essa é a sua casa, Francia!”. Cali foi, no ano passado, o epicentro dos maciços protestos antigoverno que levaram milhares de pessoas às ruas. As greves paralisaram a terceira maior cidade colombiana por mais de dois meses, durante os quais confrontos entre manifestantes, vizinhos e forças de segurança tiraram a vida de mais de 40 pessoas, a maioria delas jovens.
No meio das trincheiras que protegiam o bairro Caleño de Siloé, território onde nem a polícia nem o Exército conseguiram entrar por semanas, Francia pôde conversar com os jovens. E pôde chegar lá sem escolta.
Nesta Cali, a candidata incentivou a população a “levar à resistência às urnas”. Foi ali que uma jovem Márquez trabalhou limpando casas, uma das memórias a que mais recorre quando fala com o público. É o que serve para se conectar com aqueles que a escutam aqui e que incomoda quem a ouve em Bogotá.
—Disseram que a política não era para a gente, que o nosso lugar como mulheres negras era como empregadas domésticas. Deixando suas casas bonitas, criando seus filhos. Para voltarmos para cá e enterrarmos os nossos. Essas cadeias de opressão devem ser quebradas.
Petro e Márquez triunfaram neste domingo. Ele, um homem que passou sua vida inteira na política. Ela, uma recém-chegada que lota as praças. A relação não tem sido fácil, mas descobriram como se complementar: ela reconcilia Petro com as mulheres e com o feminismo em que tanto escorregou como candidato. Deixa o ex-guerrilheiro mais perto de Cauca, Valle, Chocó e de outras regiões onde vive majoritariamente a população afro. Petro, por sua vez, leva Francia até sua base eleitoral, um primeiro degrau. Logo, contudo, deve querer continuar sozinha.