A dois meses do fim do mandato de Augusto Aras no comando do Ministério Público Federal (MPF), a instituição se debate com uma crise interna segundo reportagem de Lucas Ferraz, do jornal Valor, que tem agitado os bastidores e provocado um movimento de saída de procuradores.
A própria gestão de Aras, procurador-geral da República que blindou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) de qualquer investigação e colocou a independência do MPF em xeque, é apontada internamente como um dos motivos. Mas há outros, como os abusos da Lava-Jato evidenciados pela Vaza-Jato, que gerou repercussões negativas ainda não superadas, além de uma alegada desvalorização da carreira, que não seduz mais como antes.
“Quando se soma todo o quadro, há uma desilusão grande. O namoro do MPF com a sociedade civil acabou. Ou pelo menos está muito abalado”, afirmou Ubiratan Cazetta, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR).
Entre os quadros do MPF, que tem quase 1,2 mil membros em todo o país divididos em três níveis, procuradores da República, procuradores regionais e subprocuradores, alguns têm preferido a iniciativa privada, em especial os grandes escritórios de advocacia, para atuar em temas como compliance e leniência. São áreas que ganharam relevância no mundo empresarial graças, em grande medida, às investigações conduzidas pelo próprio MPF nos últimos anos.
A mais recente baixa, oficializada neste mês, foi do procurador Rodrigo de Grandis, que se especializou na atuação de crimes financeiros e lavagem de dinheiro e se notabilizou por participar de grandes operações como a Satiagraha, com foco em corrupção e desvios de recursos e que teve como alvo o banqueiro Daniel Dantas, entre outros.
Desde 2019, segundo dados da Procuradoria-Geral da República, ano em que se iniciou a gestão Aras, 16 integrantes pediram exoneração – 5 pedidos de demissão de procuradores regionais da República e 11 de procuradores; não houve pedido de saída de subprocurador, cargo no topo da carreira. Dos 16, metade foram ocupar cargos em tribunais regionais decorrentes do quinto constitucional.
“Importante destacar que, nos últimos quatro anos, foi criada a Procuradoria Regional da República da 6ª Região e ainda houve um aumento no número de vagas no Tribunal Regional Federal da 1 ª Região, o que ampliou o número de vagas reservadas ao MPF pelo quinto constitucional e, consequentemente, foram registradas mais exonerações com esse propósito”, disse a Procuradoria-Geral da República (PGR) em nota enviada ao Valor.
“Há de fato uma tendência nessa direção [saída de membros do MPF]. No passado, esses movimentos eram raros”, reconhece Cazetta, presidente da entidade representativa da categoria.
O desinteresse na carreira se reflete no número de inscrições para os novos concursos. O mais recente, o 30º em 35 anos de história, concluído em junho, teve 5.296 participantes, número que segundo a PGR representa a metade dos inscritos da média dos últimos 13 concursos. Tratou-se da seleção com o menor número de candidatos pelo menos desde 2001. O 28º concurso, realizado em 2015 no auge da Lava-Jato, teve 7.718 inscritos.
“Saí na perspectiva de novos desafios profissionais. Sempre fui prestigiado na carreira no MPF”, disse Rodrigo de Grandis, novo sócio da TozziniFreire Advogados, banca que atua nacionalmente e atende diversos setores do direito.
Perto de completar 47 anos, ele passou quase duas décadas no MPF e afirma que a possibilidade de ter um salário maior e o ambiente interno da instituição não pesaram na decisão.
Nesse mercado, os rendimentos, incluindo salários e bônus, podem chegar a duas ou três vezes mais (superando em alguns casos a cifra de R$ 100 mil) que o salário médio de um procurador.
O pedido de exoneração causou comoção entre colegas. No fim de junho, a procuradora Janice Ascari, uma veterana do MPF, lamentou no Twitter a saída e desabafou com um seguidor: “O trabalho aqui está bem difícil”. Ao Valor, Ascari disse que as “carreiras da Justiça Federal estão deixando de ser atrativas”.
A suposta falta de atratividade financeira faz parte das queixas no MPF, apesar de o salário da categoria se basear no teto constitucional do Supremo Tribunal Federal (STF), hoje de R$ 41,6 mil. A reclamação aumenta ao se comparar o rendimento com as das carreiras nos Ministérios Públicos estaduais, que recorrem a penduricalhos – cuja legalidade é frequentemente contestada na Justiça – para pagar aos promotores valores muito mais elevados que o teto do STF.
Há uma instituição para se resgatar”
Pesa ainda a aposentadoria, conforme procuradores disseram ao Valor, como causa do desestímulo. A última reforma previdenciária, de 2013, estabeleceu como teto máximo para a aposentadoria aquele do INSS, de R$ 7.507,49. Há quatro regimes previdenciários na categoria e os descontos mensais sobre o salário bruto (R$ 41,6 mil) podem chegar a R$ 17 mil.
O caso de De Grandis, que cuidará de uma área que ele define de “justiça penal negociada”, é ilustrativo sobre o perfil dos integrantes que estão deixando a instituição: são quadros que geralmente têm idade entre 40 e 50 anos, ainda distantes da aposentadoria. Essa faixa etária, segundo pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), corresponde a 31,6% de toda a categoria.
Entre os exonerados recentemente, dois se enquadram nesse perfil – e ambos são especializados em crimes financeiros. Almir Sanches, que foi do MPF por mais de uma década e integrou a força-tarefa da Lava-Jato no Rio de Janeiro, assumiu no ano passado a diretoria jurídica e de compliance da Carbonext, que atua no Brasil na comercialização de créditos de carbono.
Já o ex-procurador Marcelo Ribeiro, que deixou o MPF no início deste ano, após 16 anos, também atuou na Lava-Jato. Ele está há seis meses na Lefosse, outro escritório advocatício, cuidando da “prática de compliance, investigações e penal empresarial”.
Aliado de Dallagnol na Lava-Jato, o ex-procurador Carlos Fernando dos Santos Lima é outro que está atuando na iniciativa privada após se aposentar. Advogado, ele virou consultor de compliance. A prática ganhou impulso no Brasil com a lei anticorrupção, de 2013, e sobretudo com a investigação, iniciada no ano seguinte. Para Ubiratan Cazetta, o compliance é “uma espécie de subproduto” da Lava-Jato.
“Precisamos fazer um acerto de contas, pois a instituição é maior que a Lava-Jato. Falta uma discussão séria sobre a operação e seus impactos”, ressalta o presidente da ANPR. Ele menciona “a falta de liderança de Aras” como causa do “momento ruim”, além de sua defesa irrestrita de Bolsonaro, o que “manchou a imagem de autonomia” da instituição.
Os servidores reclamam ainda da postura do procurador-geral, pouco afeito ao diálogo com a categoria e acusado de perseguir adversários internamente, razão de muitos evitarem criticá-lo em público. Sobre as críticas, a assessoria de Aras não respondeu, limitando-se a dizer que o órgão atua “no sentido de recompor a força de trabalho, tanto de membros quanto de servidores, de forma a atender integralmente a missão constitucional”.
O atual procurador-geral se vangloria de ter acabado com a Lava-Jato – o que o aproxima de certos setores do PT desejosos em sua recondução na chefia do MPF. A blindagem a Bolsonaro lhe valeu um abaixo-assinado de repúdio elaborado pelos membros do MPF, um ineditismo nos 35 anos de história do órgão.
O desgaste, ressaltam os integrantes, deve ser creditado ainda ao ex-procurador-geral Rodrigo Janot, que chefiou o MPF no auge da Lava-Jato e foi responsável por condutas que afetaram a imagem do órgão, como quando disse ter ido armado para o plenário do STF para disparar contra Gilmar Mendes, seu desafeto.
“Há uma instituição para se resgatar. Os debates giram sempre em torno da questão financeira, mas pouco sobre o papel institucional. Apesar do enfraquecimento e da falta de respaldo, ainda acho que vale a pena”, afirma o procurador Wilson Assis, especializado em direitos humanos e que atua em Goiás.