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"Focar apenas na ciência evita deliberadamente questões de responsabilidade política", diz Bacevic.
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segunda-feira 3 de maio de 2021 às 11:25h

Covid: ‘Políticos favorecem ciência que se alinha com suas próprias preferências’

DESTAQUE, NOTÍCIAS


“Estamos seguindo o que diz a ciência”.

Desde o início da pandemia, governos e autoridades têm usado essa frase para explicar as ações que tomam para impedir a disseminação do coronavírus.

Alguns especialistas, entretanto, acreditam que uma frase que soa tão sensata pode ter implicações mais profundas.

“A forma como a ciência se transforma em política pública depende de cálculos políticos e econômicos, bem como dos compromissos morais e ideológicos de políticos, partidos e assessores”, escreveu a socióloga Jana Bacevic em uma coluna do Guardian, em abril de 2020.

“Raramente, ou nunca, é apenas sobre ‘ciência’.

Bacevic é pesquisadora na Universidade de Durham, no Reino Unido, com especialização em políticas públicas e filosofia da ciência.

Durante a pandemia, Bacevic estudou como líderes políticos usaram os conselhos científicos que receberam.

“Os políticos tendem a favorecer o tipo de ciência que se alinha com as preferências que eles já têm”, escreveu Bacevic.

Para a especialista, “focar a atenção apenas na ciência evita deliberadamente questões sobre responsabilidade política”.

Na BBC News Mundo, conversamos com ela sobre como é a relação entre ciência e política em tempos de pandemia e que lições isso deixa para futuras crises globais de saúde.

Durante a pandemia, muitos líderes políticos repetiram a frase “estamos seguindo a ciência”, para explicar as medidas que tomaram para combater a transmissão do vírus. Esse parece o caminho certo a seguir, mas, do ponto de vista dela, o assunto é mais complexo…

Jana Bacevic – Sim, uma das coisas que eu disse, desde o início da pandemia, é que a maneira como os políticos usam a ciência é uma justificativa para tomarem diretrizes políticas específicas ou ações que eles decidiram tomar.

Nesse sentido, é incorreto dizer que estão seguindo a ciência, porque isso significaria que a ciência lidera, quando, na realidade, são os políticos que lideram.

Eles decidem seguir alguns tipos de evidências científicas. Decidem aceitar ou ouvir certos tipos de conselhos científicos.

E, obviamente, excluem outros conselhos científicos, muitas vezes desses mesmos cientistas ou conselheiros. Então, na verdade, são os políticos que estão no comando.

Uma das razões pelas quais me pareceu importante chamar a atenção para isso é justamente porque senti, especialmente no início da pandemia, que, embora tenha mudado de alguma forma, alguns políticos estavam usando a ciência quase como uma desculpa para ignorar, ou pelo menos minimizar, a responsabilidade deles por certas ações, ou, mais frequentemente, por não tomar certas ações.

Quais seriam alguns exemplos de políticos usando a ciência em favor de suas decisões ou preferências?

Bacevic – Um exemplo claro no início da pandemia foi o que ficou conhecido como “giro em U”, no Reino Unido, em relação às restrições de circulação.

No início da pandemia, o governo do Reino Unido manteve a decisão de não levar em conta as sugestões de seus próprios consultores científicos, e sabíamos disso porque esses conselhos estão disponíveis ao público, então sabemos o que eles diziam.

Então, quando o governo decidiu implementar o confinamento em uma base limitada, eles citaram novas evidências, disseram que estavam seguindo um novo modelo do Imperial College London.

O que minha pesquisa e a imprensa mostraram é que esse modelo foi apresentado ao governo do Reino Unido meses antes, em janeiro, e não em meados de março, quando começou a ser levado em consideração.

Portanto, não era realmente um modelo novo. Era um modelo que lhes dizia algo que eles já sabiam, só que agora eles falam com um nível mais alto de certeza.

Nesse sentido, a ciência era a mesma, nada havia mudado em relação à ciência daquele modelo.

É possível que algo tenha mudado na forma como a ciência era comunicada, mas isso não muda o fato de o governo ter relutado em intervir ou em tomar medidas que poderiam ser vistas como radicais.

Então, esse foi um exemplo claro em que uma suposta mudança no parecer científico foi feita. Não direi como uma “desculpa” porque isso beiraria o difamatório, mas foi claramente usado como uma justificativa para mudar o curso de ação, mas a ciência em si não mudou em nada.

Outro exemplo pode ser visto em diferentes governos, sobre como eles abriram e fecharam partes da sociedade, por exemplo, escolas.

Nesse sentido, a ciência tem sido mais ou menos firme em dizer que não há razão para supor que as escolas ficarão isentas da transmissão do vírus.

Em alguns casos, os governos decidiram abrir escolas, sem exigir o uso de máscaras e sem uma justificativa relacionada às taxas de transmissão.

Basicamente, eles optaram por aceitar que a taxa de contágio aumentaria.

Outra frase muito comum dos governantes é que eles tomam suas decisões com base “na melhor ciência disponível”, uma frase sobre a qual você também tem suas ressalvas…

Bacevic – O problema disso, especialmente no início da pandemia, quando não se sabia muito sobre as rotas de transmissão ou taxas de mortalidade, é que em muitos aspectos não existia “a melhor ciência disponível”.

Para ser mais preciso, o que era considerado a melhor ciência disponível era aquela que os políticos consideravam a melhor, embora nem sempre por razões científicas.

Os cientistas muitas vezes discordam entre si em muitas questões, mas, o que é mais importante é que os cientistas raramente têm um conceito político ou ideologia para orientar o que sugerem.

Nesse sentido, os políticos estavam sendo guiados pelos sinais que chegavam para eles na época, mas estavam escolhendo o tipo de evidência que levavam mais a sério.

Em vez de dizer que estão seguindo a melhor ciência disponível, qual seria a forma mais transparente de dizer isso?

Bacevic – Não acho que podemos esperar que os políticos digam isso de uma forma mais transparente. Mas se pudéssemos escolher de que forma eles poderiam dizer isso, acho que uma forma razoável seria dizer que eles estão sendo guiados pela ciência que lhes parecem úteis para os fins políticos que desejam alcançar.

Você diz que os conselhos científicos estão limitados ao que os governantes perguntam, mas também pelo que eles não perguntam. A que você se refere?

Bacevic – É muito importante entender isso em termos de como funciona o assessoramento dos cientistas aos políticos.

No início da pandemia, quando se falava de painéis de assessoria científica, as pessoas imaginavam salas de controle com várias telas, como uma mistura de Star Wars e Minority Report.

Na verdade, geralmente é mais uma sala de reuniões. Os encontros entre políticos e consultores científicos geralmente têm um tempo e alcance muito limitados.

Os políticos geralmente chegam a essas reuniões dizendo “ok, assuntos x e y estão fora de discussão. Com base na pequena margem de manobra que temos, o que precisamos saber?”

Nessas reuniões eles não perguntam “nós realmente queremos proteger a população, o que devemos fazer?”

Basicamente, o tipo de pergunta que eles fazem é: “Suponha que não disséssemos às pessoas para trabalhar em casa. O que aconteceria nesse caso?”

Então, eles realmente não pedem conselhos científicos. O que eles fazem às vezes é pedir conselhos políticos ou que sugiram um sentido de ações de políticas públicas, o que é diferente.

Quando falam com consultores científicos, eles perguntam apenas o mínimo que lhes permita entender quais serão as consequências de suas ações em assuntos que eles não conseguem entender. Por exemplo, transmissão ou taxas de mortalidade.

Em casos como o de Donald Trump nos Estados Unidos ou Jair Bolsonaro no Brasil, parece que foi mais fácil chamar a atenção sobre sua forma de agir, porque negam abertamente a ciência. Mas e os líderes que dizem que estão seguindo o que a ciência diz?

Bacevic – Acho que essa é uma das razões pelas quais, de certa forma, tem sido mais fácil fazer oposição em lugares como os Estados Unidos.

Presumo que foi isso que vimos na eleição de 2020, uma oposição à negação explícita da ciência feita por Trump, que em alguns casos chegou a quase apoiar a pseudociência.

Mas sim, é verdade que é mais difícil com políticos e líderes que afirmam estar seguindo a ciência.

Nesse caso, acho que há duas coisas a serem observadas.

A primeira é se eles estão realmente seguindo os pareceres científicos. Porque os painéis de assessoria científica, em alguns casos, publicaram seus posicionamentos e recomendações.

No Reino Unido, o painel de assessoria científica publicou suas recomendações e os modelos preditivos que fizeram desde o início da pandemia.

Esses documentos são de acesso público.

Os que não o são, em alguns casos, podem ser obtidos com pedidos de acesso à informação, embora alguns desses pedidos tenham sido repetidamente negados.

Por outro lado, os conselhos consultivos científicos muitas vezes vazam informações para a imprensa, por isso é possível acompanhar o desacordo entre a opinião de especialistas e políticos.

Alguns desses casos têm sido óbvios, por isso os políticos costumam dizer: “ok, essa é a recomendação científica, mas é esse o caminho que decidimos seguir”.

Acho que isso nos diz que os políticos não temem mais ser vistos como alguém que decide interpretar a ciência à sua maneira, sem contradizê-la explicitamente.

O outro ponto, que o Reino Unido pode ser usado como bom exemplo, é que existem painéis de assessoria científica independentes.

Existe o Grupo de Assessoramento Científico para Emergências (Sage, por sua sigla em inglês), que não tem qualquer vínculo com o governo, mas emite pareceres de especialistas que, em alguns casos, se desviam do curso de ação que o governo decidiu tomar.

Agora, também é importante dizer que há muitos cientistas que seguiram teorias controversas ou menos confiáveis, e isso é algo com o qual devemos ser particularmente cuidadosos.

Dizer que eles estão seguindo a ciência tira um fardo dos governantes?

Bacevic – Para ser honesta, os políticos assumem uma responsabilidade em virtude de seus cargos.

Acho importante observar que quando a pandemia começou, apesar de haver medidas de biossegurança e modelos de cenários preparando os políticos e o aparelho de governo de qualquer país para um evento como este, muitos políticos foram pegos de surpresa.

O problema com as pandemias é que elas dão apenas algumas oportunidades para o heroísmo e ainda menos oportunidades para o nacionalismo.

Isso ocorre em parte porque o vírus atravessa fronteiras e em parte porque não há muitos eventos heróicos que possam ser feitos por políticos.

Os verdadeiros heróis da pandemia, por definição, são a equipe médica e os trabalhadores de emergência.

Essas pessoas não são exatamente as que tendem a estar no centro das atenções, especialmente em países onde tem havido um subinvestimento consistente ou privatização do sistema de saúde.

Nesse sentido, acho que seria justo dizer que muitos políticos foram pegos de surpresa e não conseguiram ver como essa crise poderia se transformar em uma oportunidade política.

Isso os coloca em uma situação difícil, especialmente os políticos populistas.

Acho importante observar que muitos políticos populistas estão observando de perto o que aconteceu nas eleições nos Estados Unidos.

Nesse sentido, acredito que eles estão cada vez mais preocupados em justificar suas próprias decisões, ou tentando dar a impressão de que estão fazendo o seu melhor, para que mais tarde não sejam responsabilizados ou culpados por altas taxas de mortalidade ou outros impactos da pandemia.

A ciência é política?

Bacevic – Ciência é política. Sempre disse isso abertamente. Para mim, política é a arte ou o processo de convivência e, como a ciência faz parte da sociedade, está sempre envolvida nas questões políticas. As decisões científicas têm consequências políticas.

E também as decisões científicas, incluindo pesquisas científicas, têm pré-requisitos políticos, incluindo financiamento.

A ciência é uma coisa boa, mas se não há financiamento, não há ciência. E isso é importante em relação a que tipo de ciência recebe financiamento e qual não.

Tem havido apelos, não apenas no caso da pandemia, mas em outras questões como a mudança climática, para que os cientistas sejam mais abertamente políticos.

Por exemplo, para os especialistas em clima dizerem abertamente não apenas que o aquecimento global é uma realidade gerada pelo homem, mas que isso significa que os políticos deveriam fazer isso ou aquilo.

Mas acho que isso é perturbador, no sentido de que os cientistas não têm tempo, nem autoridade, nem poder para tomar decisões políticas.

Embora possam ter suas opiniões ou ter clareza sobre as consequências de não agir de acordo com seus conselhos, na política são os governantes que devem ser responsabilizados.

Você acha que essa pandemia pode mudar de alguma forma a maneira como a ciência é usada para tomar decisões políticas?

Bacevic – Eu diria que o assessoramento científico e o processo de fornecimento de assessoria científica devem ser mais abertos e transparentes para o público, porque penso que isso permitiria ao público exigir dos políticos.

O que costumamos fazer hoje é presumir que o conselho dos cientistas é muito complexo ou muito técnico para o público entender.

Obviamente, em muitos casos isso é verdade, mas não precisa ser assim.

Por alguma razão, não há uma expectativa de que as pessoas comuns entendam questões básicas de economia ou a transmissão de um vírus.

Acho que devemos nos perguntar como podemos capacitar as pessoas para entender o que está acontecendo de uma forma que lhes permita responsabilizar os políticos.

É isso, em vez de nos perguntarmos como poderíamos consertar a relação entre consultores científicos e tomadores de decisão, porque isso deixa o público na incerteza.

Precisamos de uma prestação de contas mais democrática, e isso deve envolver o público, não apenas políticos e cientistas.

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