“O Chile não merece esta corrupção transversal”, denunciou Gabriel Boric no primeiro turno da campanha presidencial no Chile. Ele se referia ao caso SQM —grande escândalo de corrupção que durante o governo Bachelet envolveu seus atuais adversários do Unidad Constituyente (centro-esquerda) e do Chile Vamos (centro-direita). E lamentou a falta de apoio deles para as medidas concretas que propôs para a punição dos envolvidos.
Para Kast, conforme a Folha registrou, seu adversário, “a corrupção não é de esquerda ou de direita, é de todos os setores. Não é hora de pôr as mãos no fogo por ninguém, mas de auditar e investigar todos.”
Não podia ser diferente: ambos são outsiders; a bandeira da corrupção é tema de quem está fora do governo. Sobretudo de quem nunca foi governo. Quem detém ou deteve recentemente a caneta para nomear, demitir, contratar e pagar é que pode ser denunciado por corrupção. Incumbentes nunca tratam da corrupção a não ser quando são recém-chegados ao poder.
“Acabar com a corrupção é o objetivo supremo de quem ainda não chegou ao poder”. Esta máxima de Millôr é certeira e tem respaldo na literatura.
Shefter mostrou em análisehistórica sobre partidos nos EUA e Europa que a bandeira contra a corrupção e a patronagem era mobilizada pelos que estavam “fora” do aparelho de Estado no momento em que os partidos foram criados.
Os grupos que estavam “dentro” mobilizaram o eleitorado e forjaram lealdades com a oferta de bens privados, como cargos públicos e contratos governamentais. Quem está fora do estado mobiliza o eleitorado com base em bens públicos, de apelo universalista.
Sim, corrupção e impunidade não são temas setoriais como outro qualquer; são, por excelência, da oposição. E, como demonstrou Klasnja e Tucker, o seu impacto na opinião pública têm um efeito interativo com o estado da economia: quando esta vai mal o efeito é magnificado. E vice-versa, quando ela vai bem a corrupção é tolerada. Com a pandemia o efeito provavelmente é similar: se a saúde pública vai mal, a intolerância com a corrupção aumenta.
Bolsonaro irrompeu na política brandindo a bandeira da corrupção e da segurança pública, na esteira de megaescândalos afetando sobretudo o PT e o centrão. Agora seu passivo na área é gigantesco: as rachadinhas familiares vieram à tona e sua aliança com o centrão e filiação ao PL aniquilaram de forma espetacular o seu discurso eleitoral. Seu principal rival —o PT—, no entanto, não pode mobilizar a bandeira da corrupção por razões óbvias.
A virulência do discurso populista caiu por terra, dando lugar à oferta de bens privados (Shefter). Mas isto só funciona em tempos normais: não de crise política aguda.