Desde 31 de dezembro, quando a China informou a Organização Mundial da Saúde (OMS) que um vírus até então desconhecido estava se espalhando pelo país, ele já chegou a outros 77 países e a todos os continentes exceto a Antártida, infectando mais de 93 mil pessoas e levando 3,2 mil delas à morte.
A escalada do surto originado na cidade chinesa de Wuhan e a velocidade com que o Sars-cov-2, como é chamado oficialmente o novo coronavírus, se espalhou pelo mundo impressionam, mas isso não é exatamente surpreendente em um mundo globalizado.
Outro aspecto torna mais preocupante esta evolução. Em ao menos 31 países, de todas as regiões do mundo, já foi comprovado que o vírus está se disseminando localmente.
Isso já seria suficiente, na opinião de especialistas, para que fosse declarada uma pandemia, ou seja, uma epidemia em escala global. Mas a OMS não fez isso até o momento, o que foi criticado pelo governo brasileiro, para quem a organização já deveria ter dado esse passo.
“Do ponto de vista técnico e epidemiológico, é claramente uma pandemia. A questão é a OMS reconhecer isso”, diz Eduardo Carmo, pesquisador do núcleo de epidemiologia e vigilância em saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Brasília.
“A meu ver, está havendo uma hesitação e uma demora, mas ela vai ter que declarar que há uma pandemia instalada.” Essa visão é compartilhada por outros especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.
Alberto Chebabo, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia e diretor-médico do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, no Rio de Janeiro, diz que a situação atual já se configura como uma pandemia diante da transmissão sustentada do vírus nos continentes. “A expectativa é que a OMS declare nos próximos dias”, diz Chebabo.
O infectologista Marcos Boulos, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), também acredita que “falta pouco” para isso ocorrer.
“A opinião de todos no mundo é que não se está conseguindo segurar o vírus. Provavelmente, a OMS ainda está se convencendo disso, mas, quando for comprovada a transmissão sustentada no Brasil, acho que vai declarar”, diz Boulos.
A infectologista Rosana Ritchmann, do Instituto Emílio Ribas, concorda que estamos diante de uma pandemia e que o Brasil tem um peso importante na avaliação feita pela OMS.
“Há estudos que mostram que existem países-chave para a situação piorar, e o Brasil, por ter uma grande densidade populacional e ser um grande eixo regional de viagens internacionais, é um deles”, diz Ritchmann.
“Na hora em que começarmos a ver casos (de transmissão) aqui dentro ou na Argentina, vão declarar. É uma questão de tempo.”
A humanidade enfrenta pandemias desde ao menos 1580, quando um vírus do tipo influenza, que causa gripes, surgiu na Ásia e se espalhou para a África, Europa e América do Norte.
O termo é usado para descrever uma situação em que uma doença infecciosa ameaça muitas pessoas ao redor do mundo simultaneamente.
Uma das pandemias mais graves já enfrentadas ocorreu entre 1918 e 1920. Estima-se que 50 milhões de pessoas tenham morrido na pandemia da gripe espanhola, mais do que os 17 milhões de vítimas, entre civis e militares, da 1ª Guerra Mundial.
O exemplo mais recente foi a disseminação global do vírus influenza H1N1, que causou a pandemia da gripe suína, em 2009. Especialistas acreditam que ele tenha infectado milhões de pessoas e matado centenas de milhares.
Disseminação global do coronavírus gera receio em quase todos os países, entre eles o Paquistão
Mas uma pandemia não se caracteriza pela gravidade da doença que ela causa. “O principal fator é o geográfico, quando todas as pessoas no mundo correm risco”, diz Ritchmann.
Pandemias são mais prováveis com novos vírus. Como não temos defesas naturais contra eles ou medicamentos e vacinas para nos proteger, eles conseguem infectar muitas pessoas e se espalhar facilmente e de forma sustentada.
O novo coronavírus preenche todos estes requisitos, na opinião do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Para ele, a organização já deveria ter declarado uma pandemia. “Já tem critérios para isso”, disse Mandetta em uma coletiva de imprensa na última quinta-feira (26/02).
Nancy Messonnier, diretora do Centro Nacional de Imunização e Doenças Respiratórias do Centro para Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, a agência governamental americana de saúde pública, afirmou há uma semana o novo coronavírus se aproximava rapidamente de um status pandêmico.
“O fato de esse vírus ter causado doenças, incluindo doenças que resultaram em morte, e uma propagação sustentada de pessoa para pessoa é preocupante. Esses fatores atendem a dois dos critérios para uma pandemia”, disse Messonnier.
“À medida que a disseminação local é detectada em mais e mais países, o mundo se aproxima do terceiro critério: disseminação mundial do novo vírus.”
A OMS tem sido cautelosa em confirmar oficialmente a progressão da gravidade do surto.
No fim de janeiro, a organização reuniu por duas semanas seguidas seu comitê de emergência para avaliar se havia uma situação de emergência de saúde pública de interesse internacional.
Após a primeira reunião, disse que ainda era cedo para isso, mas, após a segunda, reconheceu que a disseminação internacional do Sars-Cov-2 representava um risco para outros países e exigia uma resposta global coordenada para conter o novo coronavírus.
Naquele momento, o diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, afirmou que a transmissão local fora da China e um receio sobre o impacto do coronavírus sobre países com sistemas de saúde mais frágeis levou àquela decisão.
E foi só no sábado passado que a organização disse que o novo coronavírus representa um perigo “muito alto” globalmente, o nível máximo de sua classificação de risco.
O mesmo padrão parece se repetir agora. Ghebreyesus afirmou na semana passada que o vírus tem um “potencial pândemico”, mas que ainda não tinha chegado a este estágio, porque não estaria se espalhando livremente pelo mundo, nem provocando mortes em larga escala.
“Estamos monitorando a situação a cada momento do dia e analisando os dados. Já disse isso antes e vou repetir: a OMS não hesitará em declarar uma pandemia, se as evidências apontarem isso”, disse Ghebreyesus na segunda-feira (02/03).
Declarar uma pandemia significa dizer que os esforços para conter a expansão mundial do vírus falharam e que a epidemia está fora de controle. No entanto, esta crise passa agora por um momento singular desde que começou.
O grupo de nações afetadas cresce dia a dia, assim como daquelas onde há transmissão local, mas o número de mortes fora da China superou pela primeira vez, nesta quarta-feira (4/2), os óbitos registrados no país. O número de casos confirmados entre os chineses também vem caindo progressivamente.
“Declarar ou não uma pandemia depende do recado que a OMS quer passar para o mundo”, afirma Chebabo.
“A OMS usa o exemplo da China e de outros países, como Vietnã e Camboja, que tiveram casos no início e conseguiram conter a disseminação, para dizer que ainda há espaço para contenção.”
Ao afirmar que estamos diante de uma pandemia, a OMS sinaliza que é hora de passar para a fase de mitigação, ou seja, deixar de se concentrar na detecção de novos casos e adotar medidas para tratar os pacientes em estados mais grave e evitar mortes.
Mas, antes disso, a organização precisa garantir que terá como apoiar os países mais pobres na ações necessárias para isso, diz Boulos.
“A OMS subsidia muitos países e deve estar se mexendo há algum tempo para garantir que, na hora em que a pandemia for declarada, terá os recursos financeiros necessários.”
A organização também tem sido cuidadosa diante da evolução do novo coronavírus porque foi bastante criticada por ter considerado a disseminação da gripe suína uma pandemia, três meses após ela eclodir no México.
Isso gerou uma corrida global para a compra de medicamentos e outros insumos para combater o vírus H1N1, que, depois, se mostrou menos letal do que se esperava.
Carmo, da Fiocruz, participou de um comitê independente que avaliou a resposta da OMS diante da gripe suína e diz que, na época, a decisão não foi tomada de forma isolada pela organização, mas com base em estudos científicos que faziam “previsões catastróficas”.
Ele avalia que a OMS deve declarar agora uma pandemia para que seja possível otimizar recursos e direcionar esforços de forma mais eficiente, e evitar assim um colapso dos sistemas de saúde de seus países-membros.
“Quanto mais há esse atraso, mais esses sistemas vão estar concentrados em detectar novos casos enquanto precisam lidar com os pacientes graves, o que leva a uma sobrecarrega. Se não houver uma mudança, os insumos e pessoal que temos à disposição serão insuficientes para dar conta da situação”, afirma Carmo.
O Ministério da Saúde disse à BBC News Brasil que, independentemente da declaração de pandemia, já “está se preparando para uma fase de transição entre a contenção do vírus e o atendimento à população afetada”.
A OMS não respondeu a um pedido de entrevista para esta reportagem.
Ao mesmo tempo, o novo coronavírus apresenta um grande potencial de transmissão, mas parece ser menos letal do que aqueles por trás de outras duas epidemias nas últimas duas décadas.
A OMS estima que 3,4% dos pacientes morrem por causa da covid-19, a doença causada por este vírus. Este índice foi recentemente revisado para cima pela organização, que antes apontava uma taxa de letalidade de cerca de 2%.
Ainda assim, é uma proporção bem menor do que a registrada nos surtos de coronavírus da Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars, na sigla em inglês) e da Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers, na sigla em inglês), em que 10% e 35% dos pacientes morreram, respectivamente.
Diante disso, o diretor-geral da OMS justificou a decisão de não ter declarado uma pandemia até momento ao dizer que usar esse termo sem o devido cuidado pode ampliar um medo desnecessário na população e ter um grande impacto sobre os sistemas de saúde locais.
Boulos diz que isso não pode ser uma justificativa, porque alimentos e outros produtos básicos já estão se esgotando em supermercados e farmácias, os mercados de ações tem acumulado sucessivos resultados negativos e já houve vários casos de hostilidades contra cidadãos chineses e de outros países onde o surto é mais grave.
“Em um mundo globalizado, o pânico já está acontecendo há algum tempo. Veja o que está ocorrendo no Brasil, onde temos apenas dois casos confirmados e não se acha mais álcool ou máscaras. Tudo acabou antes mesmo da epidemia começar aqui.”