Em uma reportagem do jornal O Globo publicado neste domingo (3), mostra que a porta de entrada para o sonho de uma vida melhor na Europa, o aeroporto de Lisboa virou o centro da peregrinação de emigrantes brasileiros que desistiram de viver em Portugal. Eles perderam o emprego devido à pandemia da Covid-19 e não conseguem mais permanecer no país, mas estão sem dinheiro para a volta ao Brasil.
Em tempos de distanciamento social e frio na madrugada, cerca de 40 pessoas dormiram aglomeradas por uma semana na calçada do terminal à espera de um encaixe em um dos voos de repatriamento fretados pelo Itamaraty. Na quinta-feira, houve desistências, 23 puderam embarcar de última hora e 17 foram para um abrigo.
O cônsul-geral adjunto do Brasil em Lisboa, ministro Eduardo Hosannah, estimou que há outras 600 pessoas em situação semelhante, entre turistas e desvalidos, e adiantou que requisitou aprovação de recursos para novos voos de repatriamento, mas aconselha aos residentes a procurarem os programas de assistência de Portugal.
Oficialmente, a comunidade brasileira residente é de 150 mil pessoas, a maior no país. O Fundo Monetário Internacional (FMI) previu que o desemprego em Portugal atingirá 14% da população, a maior taxa já registrada. Em 45 dias de estado de emergência, milhares de brasileiros perderam emprego e há relatos de que grande parte vive à beira da mendicância e dependente de doações para comer.
Com uma manta colorida enrolada ao redor do pescoço, várias camadas de agasalhos, capuz, luvas e máscara cirúrgicas, Alex Santos dormiu durante uma semana em meio aos carrinhos de bagagens na calçada do terminal. Em um dos bolsos da calça, o ex-serralheiro de 41 anos, de Duque de Caxias, diz carregar €70, mas não pode gastar porque é o dinheiro que pretende usar para ir de São Paulo, destino único dos voos, a Conselheiro Pena, no interior de Minas Gerais, onde encontrará a mulher e as três filhas, para quem enviava dinheiro. Ele afirma que seu nome chegou a ser incluído pelo Itamaraty, mas depois o embarque foi adiado e ele segue à espera no abrigo:
“Cheguei a pensar que teria que mendigar. Trabalhava como garçom em um restaurante em Nazaré e fui despedido depois de um ano e meio em Portugal. Pensei em construir algo para a família, que ficou no Brasil, mas não deu. Não tenho visto de residência nem posso pedir seguro-desemprego, mas mesmo que pudesse, quero ir embora, porque no Brasil eu tenho casa”.
Durante a pandemia, o governo de Portugal decretou que imigrantes com a regularização pendente poderiam ser considerados legais, desde que tivessem dado entrada no pedido de residência até 18 de março. Teriam acesso ao sistema de saúde e apoio da previdência social para autônomos (a medida excepcional durante a pandemia estabelece um valor com base em remunerações anteriores).
Mesmo quem tem direito ao seguro-desemprego tradicional quer voltar, porque não acredita na recuperação da economia em curto prazo. Cerca de um em cada cinco trabalhadores do país foi demitido desde o início do surto, e o número de desempregados subiu para 380.832 pessoas — apenas 10 mil abaixo do pico da crise financeira de 2008.
O estado de emergência em Portugal termina hoje e, a partir de amanhã, começa a reabertura lenta e gradual, com medidas rígidas de segurança semelhantes às adotadas em outros países europeus, para que não haja mais casos de contágio. O plano de desconfinamento foi dividido em três fases, com a reabertura de diferentes setores da economia a cada 15 dias — os primeiros a voltarem a funcionar são os pequenos comércios, cabeleireiros, concessionárias de carros e livrarias.
O trabalho remoto continuará obrigatório no país até o final do mês. Os trabalhadores poderão retornar gradualmente aos escritórios em junho, quando for implementada a terceira fase do plano, que inclui ainda a reabertura de shopping centers, cinemas e teatros, com a manutenção do distanciamento físico.
No último dia 20, Daniella Ferreira, que deixou de pagar o aluguel em Carcavelos, em Lisboa, recebeu o apoio da previdência social e exibiu um comprovante de depósito: €62,40. Sem resposta da embaixada brasileira, ela não quis pôr em risco a saúde da família e entregar as chaves para ir ao aeroporto.
“Não quis arriscar, tenho duas crianças. Entrei em desespero para alimentar meus filhos de 11 e oito anos. Fui à igreja pedir doação. Não paguei o aluguel de abril nem vou pagar o de maio. Meu marido recebeu abono de €75 e temos contas de luz e gás que custam isso. Éramos técnicos de administração em São Paulo e chegamos em 2018 em Portugal. Eu fiz faxinas. Ele trabalhou em obras e por vezes nem foi pago. Vou embora destruída, mas no Brasil temos casa para morar”, disse Ferreira, que conseguiu quatro passagens em uma “vaquinha” de familiares, e ainda aguarda pelo voo, adiado consecutivamente pela companhia aérea.
Logo após o estouro do surto na Europa, uma verba de R$ 62 milhões foi destinada para operações de repatriamento do Itamaraty em todo o mundo. Somente de Portugal foram retiradas quase 1.500 pessoas. Para receber o apoio, é preciso fazer um cadastro e obedecer ao critério determinado pela embaixada, de extrema fragilidade social e econômica.
A confirmação em um dos voos chega por e-mail e, para alguns, este processo durou mais de um mês. Para quem não recebeu o aviso e não tem onde esperar, o aeroporto passou a representar uma esperança. Na manhã da última quinta-feira, o paulista André Soncin estava indignado ao não receber confirmação da embaixada e observar um cachorro junto de sua dona na fila de embarque para o repatriamento.
“O cachorro sendo repatriado pelo Brasil, enquanto o ser humano fica aqui”, disse Soncin.
Aos 50 anos, o ex-professor substituto de História chegou a Portugal em fevereiro de 2019 e tentava se estabilizar para levar a mulher e os quatro filhos. Trabalhou como servente e ajudante de carpintaria, diz que ganhava € 900 e mandava € 500 para família. Com o restante, pagava despesa com alimentação e o quarto em que vivia até, conta ele, ser despejado e dormir na calçada do aeroporto desde sábado. Já havia desistido de embarcar na quinta-feira quando houve uma reviravolta, vagou um assento e ele conseguiu um dos últimos lugares no voo, que quase saiu sem ele:
“Se não fosse a enorme quantidade de doação de alimentos que recebemos, estaria mendigando nos últimos dias. Meus trabalhos eram sem contrato e não dei entrada em documento nenhum, não tinha residência nem para onde ir, assim como muitos que ficaram e não vamos deixar para trás. Queremos que o consulado os assuma”.
O cônsul-geral adjunto garantiu que ninguém embarcará “no grito” nesta segunda fase de repatriamento.
“Não fazemos caridade com dinheiro púbico. A pessoa se inscreve, a situação é analisada e confirmada. Não adianta ficar no aeroporto, porque no grito não entra”, disse Hossanah, confirmando que os lugares que sobraram foram selecionados pelos próprios brasileiros que passaram as noites na calçada.
O ministro afirmou que será aberto um novo cadastro, que poderá determinar a quantidade dos possíveis voos extras, caso os recursos sejam autorizados.
“Poderá haver um 7º, 8º e 9º voos, depende da necessidade. Agora, é residente em Portugal, mas perdeu emprego? Então tem que recorrer às medidas de apoio do governo português. Não posso ter 20 mil querendo embarcar, não é hora de sentir saudade do Brasil. Esperamos que a economia de Portugal comece a retomar e contratar. A solução real é por aí, não pela ajuda pública. Somos só uma solução passageira”, declarou Hosannah.
Entre exemplos de critérios usados para a repatriação, o ministro diz que há brasileiros encontrados pela polícia portuguesa em situação de tráfico humano.