Na Presidência da República, Jair Bolsonaro (PL) confrontou instituições, lançou dúvidas sobre a lisura do processo eleitoral e radicalizou o discurso, especialmente contra o Supremo Tribunal Federal (STF). Ele sempre negou que tal postura tenha relação direta com a ação de seus apoiadores extremistas, que incendiaram ônibus nas ruas de Brasília, planejaram explodir um caminhão de combustível no aeroporto da capital e finalmente invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes no fatídico 8 de Janeiro. Sob a alegação de que joga dentro “das quatro linhas da Constituição”, o ex-presidente também sempre negou que tenha articulado ou participado de qualquer trama golpista para impedir a posse de Lula. Apesar disso, a Polícia Federal (PF) investigava há tempos indícios de que Bolsonaro, alguns de seus auxiliares e um punhado de militares cogitaram anular o resultado da eleição de 2022 para manter o capitão no comando do país. Outras descobertas reforçaram as suspeitas de organização de uma insurreição antidemocrática, mas nada comparado aos fatos graves — e estarrecedores — tornados públicos na terça-feira 19, que complicaram a situação jurídica do ex-presidente e culminaram em seu indiciamento pelos crimes de tentativa de golpe, tentativa de abolição do estado de direito e organização criminosa.
Além de Bolsonaro, a Polícia Federal acusou outras 36 pessoas pelos mesmos crimes. Na lista estão quatro ex-ministros do governo passado (Walter Braga Netto, da Casa Civil, Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, Paulo Sérgio de Oliveira, da Defesa, e Anderson Torres, da Justiça), o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, o ex-diretor da Abin Alexandre Ramagem, o ex-assessor internacional da Presidência Filipe Martins, e alguns militares graduados (Almir Garnier, ex-comandante da Marinha, Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do presidente, e o general Estevam Theophilo Gaspar, ex-membro do Alto-Comando do Exército). O inquérito foi encaminhado, na quinta-feira 21, ao ministro Alexandre de Moraes, que agora vai remetê-lo à Procuradoria-Geral da República, a quem caberá denunciar ou não os suspeitos. Dois dias antes do indiciamento, a pedido da PF, Moraes havia determinado a prisão de quatro militares e um agente da Polícia Federal suspeitos de urdir um plano para matar o presidente Lula, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o próprio Moraes.
Para os investigadores, Bolsonaro e seus principais auxiliares estavam no epicentro dessa trama diabólica. A polícia afirma que uma reunião preparatória para o planejamento do assassinato de Lula, Alckmin e Moraes foi realizada na residência do general Braga Netto, ex-ministro, braço direito e candidato a vice na chapa presidencial de Bolsonaro em 2022. Além disso, à frente do projeto “Punhal Verde Amarelo” — o nome que os extremistas escolheram para a ofensiva criminosa e antidemocrática — estava o general Mario Fernandes, secretário-executivo da Secretária-Geral da Presidência no governo Bolsonaro. É justamente a atuação dele que fez a PF reafirmar a certeza sobre a participação de Bolsonaro no caso.
Apesar de desconhecido pelo grande público, o general Mario Fernandes tinha livre acesso ao ex-presidente. Quando era comandante de Operações Especiais do Exército, ele foi um dos responsáveis pelo esquema de segurança da posse de Bolsonaro na Presidência. A aproximação entre os dois ocorreu de forma mais definitiva sete meses depois, quando o então mandatário fez uma visita institucional à sede da corporação comandada por Fernandes, em Goiânia. Juntos, os dois vistoriaram exercícios de guerrilha urbana e acompanharam treinamentos de tiro no que é conhecido como “sala de matar”, um compartimento escuro em que alvos eletrônicos com silhuetas humanas testam a destreza do atirador. Convertido ao bolsonarismo, o general se radicalizou depois de não ter sido promovido na carreira e, como definiu um outro general a VEJA, “virou um ativista”. Essa definição não é de todo apropriada, já que a PF reuniu elementos de que Fernandes redigiu o plano para assassinar Lula e Alckmin no fim de 2022 — portanto, antes da posse — e sequestrar e explodir o ministro Alexandre de Moraes, que na época também chefiava a Justiça Eleitoral.
O “Punhal Verde Amarelo” e seu autor foram descobertos porque os policiais encontraram mensagens em um aplicativo no celular de um militar, também preso na semana passada, que já era investigado por conversar com o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, sobre a possibilidade de uma virada de mesa. Depois, os policiais apreenderam arquivos guardados pelo próprio Mario Fernandes, apontado por Cid na colaboração premiada como “um dos militares mais radicais” do entorno presidencial. Nos documentos, o general avalia a chance de êxito do plano do triplo assassinato como “média tendendo a alta”, faz estimativas de baixas de civis e militares, considerando-as aceitáveis, e lista formas diferentes de execução das mortes e até os armamentos que poderiam ser usados. Egresso das Forças Especiais, grupo de elite preparado para situações de confronto, Mario Fernandes faz um roteiro minucioso, ousado e marcado pela frieza. Identificados por alcunhas, Lula, o “Jeca”, e Alckmin, o “Joca”, deveriam ser mortos para que a chapa vitoriosa fosse “extinta” e abrisse caminho para a perpetuação de Bolsonaro no poder.
O general ainda desenhou o governo golpista que emergiria depois da “neutralização” do presidente eleito, que poderia ocorrer, segundo ele, por envenenamento, dada a suposta “vulnerabilidade de seu atual estado de saúde e sua frequência a hospitais”. A nova gestão seria tocada por expoentes da administração Bolsonaro. O general Braga Netto, por exemplo, seria nomeado coordenador-geral do “Gabinete Institucional de Gestão de Crise”. O ex-comandante do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) Augusto Heleno, alvo de buscas no início do ano por suspeita de participação na tentativa de golpe, seria o chefe de gabinete do grupo, enquanto o ex-assessor para Assuntos Internacionais Filipe Martins, preso por seis meses por ordem de Moraes, teria o posto de Relações Institucionais. Ocupante de cargos estratégicos na Secretaria de Governo, na Casa Civil e na Secretaria-Geral da Presidência, Mario Fernandes tinha acesso direto ao então presidente, dizem autoridades que trabalharam com os dois, e intensificou o discurso golpista depois de Bolsonaro não ter liquidado a última eleição presidencial no primeiro turno. Sem nenhuma base na realidade, o general dizia que a simples disputa em segundo turno era evidência de que as urnas eletrônicas estavam programadas para dar vitória ao petista.
Quando dava expediente no Planalto, Mario Fernandes se movia com desenvoltura. Segundo as investigações, ele imprimiu o plano golpista em uma impressora do prédio e depois levou o papelório ao Palácio da Alvorada, onde Bolsonaro estava. Até onde se sabe, a PF não colheu prova de que o ex-presidente conversou com o general sobre o assunto ou tomou conhecimento de sua proposta de ação criminosa, como ocorreu no caso de uma das minutas do golpe, editadas pelo ex-presidente. Essa é uma lacuna importante da investigação. Em mensagens colhidas pelos investigadores, o general fala, no entanto, que Bolsonaro acatou alguns de seus “assessoramentos” e que os dois debateram sobre o melhor momento para reagir à vitória de Lula. A data ideal seria até 12 de dezembro, quando o petista seria diplomado. Depois disso, entraves como a troca de comando das Forças Armadas, por militares da predileção do petista, e a potencial desmobilização de apoiadores bolsonaristas em frente a quartéis militares espalhados pelo país poderiam dificultar que o plano fosse adiante. “Durante a conversa que eu tive com o presidente, ele citou que o dia 12, pela diplomação do vagabundo, não seria uma restrição, que qualquer ação nossa pode acontecer até 31 de dezembro”, resumiu Fernandes em uma mensagem a Cid.
Além de trânsito no gabinete presidencial, o general tinha contato com extremistas que depredaram a sede da Polícia Federal após a oficialização da chapa presidencial eleita, telefonava constantemente para a cúpula militar em busca de melhores estruturas aos golpistas apinhados em frente aos quartéis e contabilizava defecções no Alto-Comando do Exército, àquela altura um anteparo contra as aspirações antidemocráticas. Pelos cálculos dos golpistas, pelo menos três generais toparam a intentona. A maioria, no entanto, não quis embarcar na aventura, como o próprio Mauro Cid registrou certa vez, em tom de lamento, numa troca de mensagem. No plano para “neutralizar” dissidentes que invariavelmente resistiriam ao golpe, Alexandre de Moraes — ou a “Professora”, segundo os extremistas — também virou alvo preferencial. Chefe do Tribunal Superior Eleitoral quando Bolsonaro foi declarado inelegível por promover uma reunião com embaixadores com o objetivo de descredibilizar as urnas eletrônicas brasileiras, Moraes foi monitorado clandestinamente logo após a eleição presidencial de 2022 por militares fiéis à cartilha do ex-presidente, que colocariam em prática um plano para sequestrá-lo e matá-lo no dia 15 de dezembro.
O planejamento para a ofensiva teria sido realizado na residência de Braga Netto, também inelegível por endossar atos antidemocráticos. Foi nessa reunião, segundo a PF, que foram elencadas as necessidades logísticas e orçamentárias para que integrantes das Forças Especiais pudessem colocar em operação a “neutralização” de Moraes. O projeto reunia estudos sobre os trajetos feitos pelo ministro em São Paulo e em Brasília, o efetivo de segurança que o acompanhava, o armamento necessário para o assassinato — de armas de grosso calibre à explosão e envenenamento em uma solenidade pública — e até a contabilidade de baixas aceitáveis na própria equipe dos conspiradores. Essa parte do plano, registrada no acervo golpista sob o título de “Copa 2022”, foi abortada, mas a PF não sabe nem o porquê nem por quem. Como ocorria com Bolsonaro, Mario Fernandes era próximo de Braga Netto e chegou a sugerir que ele voltasse para o Ministério da Defesa como forma de pressionar a caserna a se mobilizar contra a posse de Lula.
Em um áudio enviado em novembro de 2022 a um auxiliar de Bolsonaro, o general rebelde argumentou: “Te mandei aí acima uma mensagem que eu elaborei e mandei pro comandante do Exército. Cara, eu tô aloprando por aqui. Sugeri o presidente até, p*, ele pensar em mudar de novo o MD (ministro da Defesa), p*. Bota de novo o General Braga Netto lá. General Braga Netto tá indignado, p*, ele vai ter um apoio mais efetivo. (…) Aí vão alegar que eu tô mudando isso pra dar um golpe. Qualquer solução, caveira, tu sabe que ela não vai acontecer sem quebrar ovos, né, sem quebrar cristais”. A prisão de Mario Fernandes, a primeira de um militar de altíssima patente nas investigações que apuram a tentativa de golpe de Estado, faz a PF dar mais um passo na tarefa de completar o quebra-cabeça, ligando todas as peças, dos soldados rasos à cúpula. O trabalho chegou ao topo da pirâmide. No início do ano, ex-comandantes do Exército e da Aeronáutica prestaram depoimento e afirmaram que Bolsonaro não só convocou reuniões em que a trama antidemocrática era debatida, como alterou termos de uma minuta que decretaria intervenção nos poderes constituídos, prenderia desafetos como Alexandre de Moraes e permitiria que ele, mesmo derrotado nas urnas, se perpetuasse no poder.
Bolsonaro estava em viagem a Alagoas quando estourou a nova operação da Polícia Federal. A VEJA, ele minimizou sua relação com o general Mario Fernandes, disse que todos tinham acesso livre a seu gabinete e afirmou que jamais fora informado sobre um plano de assassinato de autoridades. Os filhos também saíram em sua defesa. O senador Flávio Bolsonaro, por exemplo, declarou que o simples ato de planejar um homicídio não configura crime. Outros aliados desdenharam do plano de triplo assassinato, declarando que profissionais não registram atos desse tipo em papel ou que, se houvesse algo de fato nesse sentido, um atirador de elite resolveria o problema. “Lá na Presidência havia mais ou menos 3 000 pessoas naquele prédio. Se um cara bola um negócio qualquer, o que eu tenho a ver com isso? Discutir comigo um plano para matar alguém, isso nunca aconteceu”, disse Bolsonaro a VEJA. “Eu jamais compactuaria com qualquer plano para dar um golpe. Quando falavam comigo, era sempre para usar o estado de sítio, algo constitucional, que dependeria do aval do Congresso”, acrescentou.
O ex-presidente alega que as acusações contra ele são políticas, o que reforçaria a tese segundo a qual ele é vítima de uma perseguição destinada a tirá-lo do jogo. O fato é que não há mais o que se questionar sobre as tentações autoritárias de boa parte dos auxiliares civis e militares que cercavam o então presidente. É difícil imaginar que tudo isso aconteceu sem que ele fosse informado ou, no mínimo, tenha percebido que havia uma conspirata em andamento bem debaixo de seu nariz. O mesmo vale para o general Braga Netto e todos os militares e civis indiciados por envolvimento na trama. A Justiça, porém, não opera com imaginação. Dias antes de Jair Bolsonaro, depressivo e isolado, ter deixado o país sem passar a faixa presidencial para o sucessor, Mauro Cid, em uma mensagem ao general Mario Fernandes, resumiu assim a suposta reticência do chefe em seguir adiante com a virada de mesa: “O negócio é que ele tem essa personalidade às vezes. Ele espera, espera, espera, espera pra ver até onde vai, ver os apoios que tem”. O golpe não se concretizou, porém a mais grave investida contra as instituições democráticas de que se tem notícia desde o fim da ditadura está demonstrada e não pode ficar impune, seja o responsável um soldado raso, um general, o ex-presidente da República — ou todos eles juntos.
Publicado na revista Veja de 22 de novembro de 2024, edição nº 2920