Eles não são famosos, nem influenciadores, no sentido mais popular do termo, mas o conteúdo que criam alcança milhões de usuários nas redes sociais. Muitas vezes operam na condição de anonimato, como administradores de páginas apócrifas, e mesmo sem mostrar o rosto ganharam uma legião de fãs na internet. A matéria-prima é o universo do Direito e o que os une é a sátira.
De petições e decisões judiciais a trechos de audiências: tudo é adaptado para a linguagem do meme. As publicações furam a bolha e, com frequência, caem nas graças do público leigo, sobretudo quando surfam em alguma tendência viral da internet. Até o fim do relacionamento entre o influenciador Chico Moedas e a cantora Luísa Sonza, a grande febre nas redes sociais neste mês, rendeu postagens.
A essência do trabalho é uma produção rápida. Quem publica primeiro, sai na frente. O conteúdo precisa ser engraçado e, acima de tudo, ácido. A popularidade vem da identificação – o advogado que perde o prazo, o juiz que não lê o processo, o cliente que reclama dos horários.
A Justiça já costuma ser vista como uma piada.
Thales P., criador da página Como tá meu processo
O Estadão conversou com os criadores de quatro dessas páginas – Tretas Jurídicas, Memes Jurídicos, Advogado sem OAB e Como tá meu processo. Todos são formados em Direito e usam a própria experiência na advocacia como fonte de inspiração. A maioria tem jornada dupla: trabalha no escritório (ou em home office) e, em paralelo, passa até oito horas no celular para alimentar os perfis.
“Não largaria minha carreira como advogado, até porque eu preciso dela para gerar conteúdo”, conta Thales P., 31, administrador da página Como tá meu processo. Ele criou o perfil em 2020, no auge da pandemia, e cuida sozinho da conta.
No universo das redes sociais, onde visibilidade é a grande moeda de troca, essas páginas rendem até R$ 10 mil por mês alugando espaço no feed e nos stories. Elas são procuradas para promover congressos, serviços para advogados, como softwares que notificam os prazos dos processos, livros jurídicos e até por pessoas físicas em busca de autopromoção. A estratégia de monetização é diversa, vai de parcerias fixas a publicidades esporádicas, tudo selecionado com critério para não destoar do conteúdo e afugentar seguidores.
Por ser uma página de humor, as pessoas acham que não tem trabalho por trás, mas é, de fato, um negócio.
Bernardo Mendes Cardoso, criador da página Memes Jurídicos
A página Tretas Jurídicas chegou a ser contratada pela Disney+ para ajudar na promoção da série Mulher Hulk. A protagonista, interpretada pela atriz canadense Tatiana Maslany, vive uma rotina como advogada bem-sucedida antes de se transformar na heroína. “Quando fui procurado pela agência, pensei que era golpe. Tinha pouco mais de um ano de página. Foi ali que eu tive noção do tamanho da página. Eu fazia as coisas sem perceber. Era uma brincadeira”, conta Sérgio Tavares, criador da Tretas Jurídicas. O símbolo da página, que virou marca registrada, é o Julius, personagem vivido pelo ator Terry Crews no seriado Todo mundo odeia o Chris, sucesso no início dos anos 2000, usando uma peruca loira.
A popularidade das páginas não é obra do acaso. Há uma preocupação deliberada em evitar a tecnicidade para tornar o conteúdo acessível mesmo para quem não é advogado ou magistrado. O apresentador Serginho Groisman é um dos fãs famosos. “O Direito é muito universal”, avalia Jivago Figueirêdo, 31, sobre o sucesso do formato. Ele é sócio do advogado Bernardo Mendes Cardoso, 33, na página Memes Jurídicos. A conta é a maior do nicho, com 739 mil seguidores, e também ajuda a promover a marca de camisetas dos empresários.
Foi Bernardo quem criou a página, ainda em 2015. A ideia inicial era usar o espaço para postar conteúdo informativo e sério, mas adaptado para a linguagem das redes. Com o tempo, ele se deu conta de que o público preferia o humor. “Eu tinha feito para postar conteúdo jurídico mesmo. Tanto é que se chamava ‘Direito Sucinto’. A ideia era colocar conteúdo jurídico de maneira bem clara e objetiva. Com o tempo, eu fui desapegando dessa ideia e comecei a postar humor. Foi tudo bem despretensioso”, relembra o advogado, que hoje trata a página como uma empresa. “Por ser uma página de humor, as pessoas acham que não tem trabalho por trás, mas é, de fato, um negócio.”
O maior termômetro da popularidade é quando os administradores, sobretudo os que se mantêm no anonimato, recebem por terceiros, no grupo do escritório ou da universidade, por exemplo, piadas que eles próprios criaram. “Muita gente não sabe que sou eu. Nunca apareci. E, no fundo, é um personagem. Não sou eu e não é exatamente o que eu penso. No começo eu queria dar minha opinião, mas não dá certo”, afirma Filipe, criador da página Advogado Sem OAB. O perfil surgiu quando ele ainda era estudante de Direito, daí o nome.
Política é assunto proibido. Todos avaliam que o tema mais atrapalha do que ajuda no engajamento positivo. O foco é mesmo o olhar para dentro do Judiciário e para as nuances do dia-a-dia dos operadores do Direito.
“As pessoas acham que no Judiciário não é permitido rir, não se pode fazer uma piada. A gente vem para quebrar esse paradigma. Talvez em um futuro muito próximo até os juízes façam piadas na internet”, projeta Thales. “A Justiça já costuma ser vista como uma piada, então é mais fácil ainda.”